Rodrigo Tavares, opinião, in Expresso
Na comunicação social praticamente não há colunistas, comentadores ou analistas negros
Portugal não contabiliza a sua população negra com o argumento de que a representação quantitativa étnico-racial poderá legitimar a segregação dessa comunidade e servir de ferramenta de reforço do racismo. Não está isolado. Contrariando recomendações de organismos internacionais, França, Alemanha, Espanha e outros países europeus usam argumentos idênticos.
Um número mais expressivo de países discorda. No Reino Unido os autodeclarados negros representam 4% da população. Na Irlanda 1,5%. No Canadá, 4,3%. No Brasil, 56%. São dados recolhidos em censos. Em 1870, no Senado, o imperador do Brasil D. Pedro II dirigiu-se aos “augustos e digníssimos senhores representantes da nação” para solicitar a “decretação de meios para levar-se a efeito o recenseamento de toda a população do Império”. O primeiro Censo, de 1872, apontou que 58% dos brasileiros autodeclararam-se como “pretos ou pardos”, 38% como brancos e 4% como indígenas.
Em 2018, o governo português criou um grupo de trabalho com especialistas que recomendou a recolha de dados étnico-raciais nos Censos de 2021. Os integrantes sugeriram que fosse dada a oportunidade aos portugueses de responderam se têm origem ou se sentem que pertencem a um grupo descrito como “Negro/Português negro/Afro-descendente/De origem africana.”
Na altura, uma sondagem apontava que 80% dos portugueses estariam a favor da pergunta e que 90% considerava que há discriminação em Portugal. Mas o Instituto Nacional de Estatística barrou a pergunta nos Censos de 2021. Ao jornal brasileiro O Globo, o INE afirmou que anulou a questão “por considerar que a recolha desta informação não é passível de ser efetuada com os níveis de qualidade desejados nesta operação”. Porque não?
A posição do INE alimenta dois problemas. Sem estatísticas, a caneta do Estado fica sem tinta para subscrever políticas públicas, adotar uma intervenção social específica ou fomentar mecanismos potenciadores de igualdade social. Poderíamos ter Rendimento Social de Inserção sem saber quantas pessoas são afetadas pela pobreza? Subsídio de desemprego sem sabermos qual o número de trabalhadores que perderam o emprego? Bolsas de mérito escolar sem sabermos quem são os alunos mais talentosos?
Além disso, ao não dimensionar a população negra para evitar a sua segregação, a mão zeladora do Estado acaba por reforçar a visão de que os negros representam uma comunidade frágil que necessita de proteção. Tenta-se evitar uma segregação ativa por intermédio de uma segregação passiva.
Aliás, três problemas. Reforça-se também a ideia de os portugueses são culturalmente europeus e fenotipicamente brancos, havendo menos espaço sociológico de pertença para todos os que não se identificam com uma tipologia caucasiana de sociedade. Por isso, a militância dos movimentos negros de vários países reivindica que os censos contemplem questões étnico-raciais. Foi assim, com sucesso, nos censos da Argentina de 2021.
À má decisão do INE em 2021 seguiu-se uma boa decisão em 2023. O Instituto decidiu realizar um “Inquérito às Condições, Origens e Trajetórias da População Residente”. A sondagem cobrirá cerca de 35 mil habitações e abordará, entre outras questões, a origem étnico-racial das pessoas que residem em Portugal. A recolha da informação decorreu entre janeiro e maio de 2023 e os resultados serão apresentados em breve. Ainda que seja uma amostra pequena, é um primeiro passo relevante.
No Brasil, o sistema nacional de quotas (de 2012, com a adoção da Lei 12.711), o fortalecimento de leis antiraciais e a intensificação do debate público sobre estas questões, estimulado por centenas de intelectuais e entidades do terceiro setor, têm produzido resultados positivos. A percentagem de alunos “pretos e pardos” matriculados em universidades públicas e privadas atingiu os 48% em 2022. Nos meios de comunicação e principalmente na televisão, a palete social parece estar devidamente representada, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, com vários negros a ocuparem espaços de poder, desde protagonistas em novelas, destaque em publicidade ou âncoras dos principais telejornais. Ataques racistas são amplificados e condenados veementemente na imprensa. É o resultado de mais de um século de ativismo negro no país, onde se destacaram líderes como Abdias Nascimento (1914-2011), Lélia Gonzalez (1935-1994), Hamilton Cardoso (1953-1999) ou Sueli Carneiro (1950-).
“O racismo continua a ser estrutural no Brasil, mas o país já está falando mais a respeito do assunto. Esperamos que países como Portugal possam também desenvolver estatísticas e medidas de enfrentamento ao racismo estrutural,” afirmou à coluna a brasileira Luana Génot, fundadora e diretora executiva do Instituto Identidades do Brasil que apoia empresas que queiram adotar ações afirmativas de inclusão de negros e indígenas.
Um estudo recente no Brasil indicou que mulheres e negros na política reduzem a corrupção e aumentam projetos de inclusão. Por exemplo, em cidades comandadas por presidentes de câmara negros, aumento o número de alunos que se candidatam ao ensino superior.
Em Portugal, o debate público, também nesta área, é menos vigoroso do que no Brasil. Apesar de iniciativas como o Afrolink, projetos como o Afrolis, revistas como a Buala, o trabalho académico de muitos investigadores negros como Cristina Roldão, Iolanda Évora ou Inocência da Mata, ou um ativismo negro nas redes sociais que infelizmente ainda não chega ao grande público, a sociedade portuguesa ainda olha para a falta de representatividade étnico-racial com economia de meios e de interesse. A professora Inocência da Mata tem vindo a alertar há anos para a falta de negros na academia portuguesa.
Quando existe, o debate é realizado dentro do ecossistema institucionalizado dos partidos ou feito com batimentos cardíacos acelerados. Sem se sentirem devidamente representados em Portugal, muitos negros procuram referências além-fronteiras. A ativista política americana Angela Davis esgotou o Tivoli BBVA em Lisboa o ano passado. A filósofa brasileira Djamila Ribeiro foi ovacionada como uma celebridade na Fundação Gulbenkian há poucos meses.
Na imprensa portuguesa, praticamente não há colunistas negros. As exceções, no Público, são duas pessoas que escrevem, principalmente, sobre questões étnico-raciais e justiça social. Mas o que pensam os negros portugueses sobre finanças públicas, política externa europeia, ou qualquer outro tema que não singularize a sua origem étnica?
No Brasil, como colunista da Folha de S.Paulo, participei o ano passado na campanha #ciêncianaseleições, uma iniciativa do Instituto Serrapilheira que incentivou os colunistas do jornal a promoverem a ciência brasileira, cedendo o espaço da suas coluna a um investigador ou entrevistando algum académico. Eu entrevistei um especialista em aço verde. Em 2015, o mesmo jornal apoiou a campanha #AgoraÉqueSãoElas, com colunistas homens a cederam os seus espaços a mulheres.
A imprensa portuguesa deveria fazer o mesmo com artigos de autores negros. Eu, e certamente muitos outros colunistas, estaríamos disponíveis para ceder o espaço e os honorários das colunas de opinião e análise.