28.8.23

Risco clínico das populações de cada unidade local de saúde vai determinar valor de financiamento

Alexandra Campos, in Público

O secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre, diz que vai apresentar “a proposta final” para as unidades de saúde familiar e a dedicação plena na próxima reunião com os sindicatos.


Em 2024, o orçamento para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) vai voltar a ser o maior de sempre, como já aconteceu este ano, garante o secretário de Estado da Saúde, Ricardo Mestre. A partir de Janeiro, o país deverá já estar todo coberto por unidades locais de saúde (ULS) – que integram os hospitais e os centros de saúde numa mesma instituição e direcção –, passando o financiamento a ser efectuado não por produção mas sim por “estratificação pelo risco”.

A população é dividida em três subgrupos — saudáveis, doentes crónicos e casos complexos — e as unidades locais passam a ser financiadas em função disso, em vez de receberem apenas pela quantidade de actos que fazem. Um dos objectivos é reduzir descompensações e agudizações e a necessidade de recurso às urgências. O SNS vai ainda ter um plano de actividades e orçamento integrado pela primeira vez, diz.

A nova equipa do Ministério da Saúde começou a trabalhar há quase um ano, em Setembro. O Governo diz que está em curso uma profunda reorganização do SNS, mas os problemas de acesso não desapareceram e nalgumas áreas até se agravaram...

É preciso contextualizar: nós entramos em funções num momento em que estávamos a sair da pandemia. Tínhamos um novo estatuto do SNS, estava a iniciar-se um processo de reorganização muito profunda e tivemos que preparar o orçamento de 2023. Depois, iniciámos um conjunto de reformas, algumas já com resultados visíveis. Começamos a desburocratizar o funcionamento do SNS. O primeiro despacho visou simplificar os processos relacionados com o investimento. Reequacionámos a forma como contratamos os profissionais: os especialistas de 2023 já beneficiaram deste processo de contratação mais rápido — em 15 dias colocámos médicos recém-especialistas no SNS. Também houve medidas para a população — uma muito visível foi a autodeclaração de doença para emissão de atestado até três dias.


Mas essa desburocratização não foi da iniciativa da direcção executiva do SNS?
É uma iniciativa do Governo que é operacionalizada pela direcção executiva e significa o alinhamento que temos na melhoria da resposta aos cidadãos.

Está a preparar o orçamento para 2024. O que vai mudar no próximo ano?
O SNS terá mais financiamento, mais investimento, mas também mais organização e capacidade de gestão da rede. [Este ano] tivemos o maior orçamento de sempre — quase 14 mil milhões de euros de despesa aprovada — e o orçamento do próximo ano também vai ser o mais elevado de sempre. O que estamos a fazer vai ser transformador. Do ponto de vista da organização, estamos a trabalhar para ter o SNS organizado em unidades locais de saúde (ULS) a partir de Janeiro.

Já em 2024 todo o SNS estará organizado em Unidades Locais de Saúde

Mas já temos ULS há muitos anos e há estudos que indicam que não provaram ser mais eficientes...
Estamos a criar um modelo de ULS que beneficia da aprendizagem das que existem, mas que as coloca noutro patamar. Já em 2024 todo o SNS estará organizado em ULS [de fora ficam só os três institutos de oncologia do país] e isso cria uma lógica diferente de funcionamento em rede, acompanhada por novos instrumentos de gestão, mais focados nas pessoas e na utilização eficiente dos recursos.

Dou-lhe o exemplo do instrumento de estratificação pelo risco que começará a ser implementado a partir de Setembro. Este permite identificar subgrupos de pessoas com necessidades semelhantes — saudáveis, doentes crónicos, casos complexos — e, a partir daí, poderemos financiar as ULS em função disso, em vez de pagarmos apenas a quantidade de actos que fazem.

Podemos também organizar respostas específicas para cada um destes subgrupos. Por exemplo, desenhar medidas que evitem descompensações, agudizações e outras situações que levam as pessoas a recorrer às urgências e, eventualmente, a ter que ficar internadas por condições de saúde que podiam ter sido controladas atempadamente.

Na prática, criamos condições para evoluir de um sistema reactivo e focado no tratamento da doença para uma dinâmica de intervenção mais pró-activa, que investe na promoção da saúde e na prevenção, que actua de forma antecipatória e que é mais sustentável.

Nos centros de saúde, o compromisso é passar todas as unidades de saúde familiar (USF) para o modelo B, em que a remuneração é associada ao desempenho. Quando é que isso vai acontecer?

Neste momento, temos 269 USF modelo A [que estão na fase de passagem para B] e temos 348 USF modelo B [a diferença entre modelo A e B está no grau de autonomia, sendo que as do modelo B têm mais, uma vez que podem aceder a incentivos financeiros mediante o cumprimento de objectivos pre-estabelecidos].


Estamos a criar um novo regime de dedicação plena [para os profissionais de saúde] de adesão voluntária e uma valorização da grelha salarial muito significativa

Ainda há 304 unidades de cuidados de saúde personalizados [o modelo tradicional]. Estamos a desenhar uma alteração legislativa, que continuamos a negociar com os sindicatos, e que permitirá generalizar as USF modelo B, sem as quotas anuais que até agora existiam.

Na próxima reunião, agendada para 11 de Setembro, o Governo apresentará aos sindicatos a proposta final para as USF e a dedicação plena. Vamos depois passar para outra fase em que os médicos possam beneficiar das alterações legislativas que estamos a preparar. Com a legislação aprovada, imediatamente disponibilizamos a possibilidade de todas A passarem a B.


E nos hospitais? Já disseram que haverá 100 centros de responsabilidade integrada (CRI) até final da legislatura. E até lá?
Neste momento, temos 45 CRI constituídos ou em fase final de implementação. E temos em curso um trabalho de preparação de um diploma para criarmos um regime remuneratório semelhante ao que existe para as USF – com remuneração-base, suplementos e incentivos associados ao desempenho.

Nos próximos dias, semanas, teremos os estatutos da direcção executiva do SNS


Mas isso vai demorar muito tempo, além de que não vai ser possível criar CRI em todas as áreas. E o que os sindicatos reivindicam é que haja de imediato um aumento substancial do salário-base...


Já dissemos que íamos actualizar os salários de todos os médicos, mas temos que alterar o paradigma. O que estamos a negociar é o reforço da grelha salarial, mas também queremos introduzir outros mecanismos que nos permitam valorizar o trabalho dos profissionais organizados em equipa. Todos os médicos poderão migrar nas USF e vamos alargar esse modelo aos CRIS.

Estamos também a criar um novo regime de dedicação plena de adesão voluntária e uma valorização da grelha salarial muito significativa. Tudo junto, no imediato representa um aumento de 24,7% e uma subida de nível remuneratório nos próximos dois anos. No total, será cerca de 30% de aumento salarial directo. Para os médicos internos, temos propostas de valorização salarial diferenciada em função do ano da sua formação — mais 3% no ano de formação geral, 4,75% nos três anos seguintes, e 7% nos últimos anos, aumentos que se somam à valorização transversal da administração pública.


O Conselho de Finanças Públicas fez vários alertas no último relatório sobre o desempenho do SNS em 2022. Desde logo, o défice foi superior a mil milhões de euros, além de que o saldo orçamental acumulado desde 2014 é muito negativo (5,2 mil milhões). E a execução do investimento tem sido sempre diminuta. O que vai mudar?

Do lado do Governo, estamos a criar as condições para que o SNS tenha uma operação equilibrada. Em 2024, vamos dar passos muito significativos nesse sentido. Continuando a reforçar o financiamento, aumentando o investimento, continuando a melhorar a organização e gestão.

Estamos a reforçar a gestão em rede dentro do SNS. Vamos criar um PAO [Plano de Actividades e Orçamento] global do SNS. Vamos criar esta figura para podermos ter um reforço da autonomia e da responsabilidade da gestão dos recursos do SNS. Um plano que possa ser usado pela direcção executiva do SNS para, em conjunto com as várias entidades, gerir em rede e de uma forma mais organizada e responsabilizante.


Quando é que a direcção executiva vai ter estatutos? Era suposto isso ter acontecido em até Junho.
Percebemos a questão do tempo e da forma, mas estamos muito focados no conteúdo dos estatutos e naquilo que é a sua articulação com as outras respostas do SNS. Nos próximos dias, semanas, teremos os estatutos da direcção executiva para passarmos depois para outra fase desta discussão: a do conteúdo. Uma reorganização com a profundidade da que estamos a fazer exige diálogo e articulação.

5500"Vamos lançar agora avisos para a construção de 5500 camas das várias tipologias de rede nacional de cuidados continuado"

Os fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para a saúde vão ser aproveitados na íntegra?
Estamos a executar um programa de investimentos muito abrangente nos cuidados de saúde primários, na saúde mental, na rede de cuidados continuados integrados, na transição digital e no investimento em equipamentos hospitalares. São investimentos de fundo, transformadores.


Vamos lançar agora avisos para a construção de 5500 camas das várias tipologias de rede nacional de cuidados continuados com fundos do PRR, a que se junta a reorganização do funcionamento da rede. Há uns meses, aumentámos o valor que vamos financiar por cama — passamos de 30 mil para 42 mil euros — e agora vamos lançar os avisos para a sua construção.

O que é que já avançou nos centros de saúde com os fundos do PRR?
Nos cuidados de saúde primários, já lançámos dois avisos e lançaremos em Setembro um terceiro para a construção e requalificação de centros de saúde. Inicialmente, tínhamos previsto criar 100 novos centros de saúde, mas, com a reprogramação, vamos criar 124. E iremos requalificar 357 centros de saúde, quando inicialmente estavam previstos 326.


Temos também um investimento significativo em equipamentos, que estão a chegar aos centros de saúde, como espirómetros [aparelhos de] raios X, e as primeiras viaturas eléctricas das 780 que adquirimos. No âmbito da reprogramação, introduzimos ainda uma nova linha de financiamento para equipamento médico pesado - estamos a investir na requalificação do parque tecnológico dos hospitais, com robôs cirúrgicos, novas ressonâncias, TAC.

Como está a evoluir o processo de transferência de competências para as autarquias?
Temos neste momento 141 autos de transferência de competências já assinados e temos um plano para alargar este número nas próximas semanas, há um trabalho muito próximo com as autarquias. Queremos que seja possível assinar com as 201. Já temos 70%, mas há compromissos assumidos para bastantes mais nos próximos dias.