O Laboratório de Polícia Científica comprova “desproporção muito significativa” entre o continente e as ilhas, onde aumentam os internamentos em psiquiatria por consumo de novas substâncias.
30 de Agosto de 2023, 6:45
Os pedidos para exames laboratoriais de Drogas e Toxicologia vindos da Madeira e dos Açores, cujos resultados comprovam depois serem Novas Substâncias Psicoactivas (NSP), correspondem actualmente a 60% do todo nacional, de acordo com dados oficiais do Laboratório de Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária (PJ) relativos a este ano.
Estes dados solicitados pelo PÚBLICO comprovam “o peso enorme” das ilhas no consumo de NSP, segundo disse fonte oficial da PJ. As ilhas têm cerca de 550 mil habitantes e o continente mais de 10 milhões. Mas não é apenas em relação à população que existe uma “desproporção”.
No conjunto das perícias em laboratório feitas para todas as drogas, a Madeira e os Açores apenas representam 7% a 8% do total dos pedidos a nível nacional. É nas solicitações das polícias que dizem respeito às NSP (e que vêm depois a confirmar-se serem novas substâncias) que a Madeira e os Açores assumem uma preponderância evidente.
No universo destas novas drogas (ou sintéticas, porque modificadas quimicamente), as duas regiões autónomas representaram quase dois terços nos primeiros sete meses deste ano, numa tendência que tem marcado os últimos anos. Até 31 de Julho deste ano, os pedidos da Madeira e dos Açores corresponderam a 60% de todas as solicitações nacionais dirigidas ao Laboratório de Polícia Científica da PJ relativas a novas substâncias. Já em 2022, representaram mais de metade (56%) depois de terem assumido maior peso em 2021 (79%) e em 2022 (78%).
Estes números agregam os pedidos da Madeira e dos Açores, não sendo possível, para já, segundo a PJ, separar os números das duas regiões. Em números absolutos, dos 103 pedidos de 2020 relativos a NSP, 80 eram provenientes das ilhas; das 220 solicitações em 2021, Madeira e Açores tinham enviado 174; e em 2022, dos 255 pedidos, foram 143 os correspondentes aos dois arquipélagos.
Essa descida em 2022 estará relacionada com a actualização feita nas listas das drogas criminalizadas. E quando assim é, os pedidos deixam de ser contabilizados como Novas Substâncias Psicoactivas. Uma droga comum na Madeira, a Alpha.PHP, conhecida por bloom, foi criminalizada em 2021. No ano seguinte, os pedidos de exames periciais a esta droga detectada pelas polícias deixaram de contar como NSP.
Internamentos compulsivos
A trajectória, sempre crescente nos últimos anos, do número dos internamentos compulsivos por perturbação psiquiátrica e surtos psicóticos associados a consumos de NSP na Madeira e nos Açores, contribuiu para se atribuir às duas regiões autónomas uma maior prevalência e preocupação relativamente ao consumo destas substâncias, quando comparada com a realidade no continente.
Essa constatação, nunca refutada, resultava de um conhecimento empírico e informal. Agora, os dados oficiais do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária solicitados pelo PÚBLICO demonstram que a existência detectada destas drogas nos dois arquipélagos é, efectivamente, superior.
No universo de exames periciais dos pedidos que chegam especificamente da Madeira e dos Açores, “já está evidenciado que as regiões autónomas representam um peso enorme no que diz respeito às Novas Substâncias Psicoactivas” quando relacionados com os números nacionais, refere fonte oficial da PJ com base nestes dados.
Quando, há duas semanas, o Presidente da República invocou a "falta de consulta" aos governos regionais dos Açores e da Madeira para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva do diploma que descriminaliza o consumo de qualquer droga independentemente da quantidade – aprovado no Parlamento no mês passado –, justificava a sua decisão precisamente com “a especial incidência dos novos tipos de drogas nas regiões autónomas” e com a necessidade de ter em conta esse contexto para avaliar o impacto da aplicação desta lei na Madeira e nos Açores.
O argumento não colheu. Nesta terça-feira, o Tribunal Constitucional (TC) disse que não se pronunciaria pela inconstitucionalidade, com base nesses pressupostos, e validou a lei, embora admitindo que "a insularidade pode colocar desafios acrescidos em matéria de prevenção e combate ao tráfico e consumo de drogas" e, em particular, das novas substâncias.
"O preço das drogas clássicas na Madeira é superior ao preço de venda no continente. Se os consumidores têm acesso a uma droga sintética, que será diferente, mas mais barata e que, para o consumidor, satisfaz aquilo que ele procura, ele vai comprá-la."Ricardo Tecedeiro - coordenador da Polícia Judiciária na Madeira
Como proposto pelo Partido Socialista, o diploma aprovado retira da legislação actual a menção específica de uma quantidade máxima permitida aos consumidores, a partir da qual poderão ser responsabilizados por tráfico, ficando os órgãos de polícia criminal obrigados a recolher indícios incriminatórios não relacionados com a quantidade em posse do suspeito.
O mesmo diploma incluiu, por iniciativa dos deputados do PSD eleitos pelo círculo da Madeira, a equiparação das drogas sintéticas às drogas clássicas para distinguir entre consumidor e traficante, com base na quantidade em sua posse, já que na lei actual as NSP não são abrangidas por essa distinção.
Mesmas regras para todos
Na altura, os deputados do PSD, eleitos pelo círculo da Madeira, indicaram ser “fundamental aplicar às NSP o mesmo regime e os mesmos princípios que se aplicam às drogas tradicionais e tratar o consumidor das novas substâncias de forma diferente do traficante, tal como já acontece com as drogas clássicas”, também pelo alarme causado pelo efeito nocivo das drogas sintéticas na saúde mental, como comprovam os números dos internamentos compulsivos por surtos psicóticos de consumidores.
Os dados do LPC enviados ao PÚBLICO mostram ainda que têm vindo a aumentar os pedidos de exames laboratoriais para todo o tipo de drogas. Cada pedido contabilizado é referente a uma ou várias apreensões pelas polícias, e relativo a um ou vários tipos de droga. O pedido é único, mas as respostas podem ser várias de acordo com cada lote numa determinada apreensão e com cada tipo de droga apreendida.
Em 2021, o número de pedidos subiu de 6092 para 6882; e em 2022, de novo e de forma significativa, para os 9471. Com os dados dos primeiros sete meses deste ano, cujo total de pedidos (até 31 de Julho) foi de 6782, prevê-se a continuação de uma tendência para o crescimento, já que, a manter-se o ritmo nestes primeiros sete meses do ano, o laboratório poderá chegar a um balanço final, em Dezembro de 2023, de 11.626 pedidos.
O que pode explicar essa maior prevalência das drogas sintéticas nas ilhas que é invocada pelos governos regionais e pelo Presidente da República, prevalência essa que, no acórdão desta terça-feira, os juízes do TC fizeram questão de sublinhar que não ignoram?
"Este é um assunto que deveria ser mais aprofundado, e mais estudado", começa por dizer Ricardo Tecedeiro, o coordenador da Polícia Judiciária na Madeira. "Determinar o padrão de consumo e perfil dos consumidores seria um trabalho importante para compreendermos melhor a realidade."
"Penso que um dos factores tem a ver com o preço de venda, bastante mais baixo do que o preço das drogas clássicas, e a acessibilidade deste tipo de droga. Mas não será o único. O preço das drogas clássicas na Madeira é superior ao preço de venda no continente", diz Ricardo Tecedeiro, que acrescenta o factor risco para os traficantes de fazer chegar droga às regiões insulares.
Quando são novas substâncias, não criminalizadas, o traficante é sujeito a uma contra-ordenação, "e isto é um factor que favorece quem se dedica a este tipo de prática, tanto mais que tem mercado" ao haver procura.Ricardo Tecedeiro - coordenador da Polícia Judiciária na Madeira
"Quem se dedica a este tipo de actividade criminosa, os traficantes, corre um risco acrescido para fazer chegar a droga à Madeira ou aos Açores. A questão do transporte constitui sempre um risco acrescido. A droga aqui é mais cara também porque os riscos são maiores. Se os consumidores têm acesso a uma droga sintética, que será diferente, mas mais barata e que, para o consumidor, satisfaz aquilo que ele procura, e é um produto disponível no mercado, ele vai comprá-la. Há por isso uma grande oportunidade para as pessoas que se dedicam a este tipo de actividade ilícita venderem esse produto."
Por outro lado, e no que respeita ao enquadramento legal, "temos sempre a dificuldade da identificação das substâncias". Quando são novas substâncias, não criminalizadas, o traficante é sujeito a uma contra-ordenação, "e isto é um factor que favorece quem se dedica a este tipo de prática, tanto mais que tem mercado" ao haver procura.
E conclui que, "apesar da diferença dos preços, como há muita possibilidade de comercialização, com menores riscos, os lucros acabam por ser substanciais".