22.11.07

Portugal propõe representante para a violência contra menores

Sofia Branco, in Jornal Público

Proposta deverá ser aprovada nos próximos dias. Tratado chega
a maioridade registando progressos mas ainda com "muito a fazer"


Já passaram 18 anos desde que os Estados do mundo se puseram de acordo com a necessidade de adoptar uma Convenção dos Direitos da Criança. O nascimento, a infância e a adolescência do documento não estão isentos de controvérsia. Mas o tratado chega à idade adulta mantendo o título do "mais assinado e ratificado de sempre".

"[A Convenção] É um processo nunca acabado", disse, em conversa com o PÚBLICO no comité nacional da Unicef em Lisboa, a sua presidente, Madalena Marçal Grilo, destacando que Portugal é dos países que contribuem menos para a agência da ONU que protege e promove os direitos das crianças, com uma doação fixa de 170 mil euros por ano, muito abaixo dos milhões despendidos pelos países nórdicos ou por Espanha.
Apesar disso, foi ideia de Portugal a criação de um representante especial junto do secretário-geral da ONU dedicado ao combate à violência contra menores (já existe um sobre crianças e conflitos armados).

Portugal propôs à União Europeia (UE) que apresentasse a ideia na ONU, o que foi aceite. Antes de chegar a todos os Estados das Nações Unidas, já a América Latina tinha comunicado à UE a sua adesão à proposta, que deverá ser aprovada nos próximos dias, devendo contar com a tradicional oposição dos Estados Unidos.

Os representantes especiais têm algum poder de intervenção, promovem relatórios, efectuam visitas de monitorização aos países e fazem recomendações. "A ideia não é apontar o dedo, mas ter uma abordagem construtiva, de partilha de boas práticas", explica Catarina Albuquerque, consultora para os direitos das crianças da Unicef, que conduziu o processo negocial em nome da UE.

Em 1978 a ideia foi da Polónia. O complexo processo de redacção adiaria a sua adopção para 1989. O que mudou desde então? "Há 18 anos, não se olhava para a criança como sujeito de direitos", recorda Catarina Albuquerque, acrescentando que se passou a questionar o "conceito de propriedade dos pais", em que a criança era tida por "apêndice", e "o conceito de família". "A criança era um ser menor, em devir que, por artes mágicas, aos 18 anos se tornava cidadão com direitos", frisa a jurista.

Pôr as crianças na agenda

O objectivo da Convenção era, pois, colocar as crianças na agenda. Porém, o projecto polaco era demasiado "decalcado" da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, com "um cariz muito generalista e assistencialista", descreve Catarina Albuquerque.
Em plena guerra fria, a discussão politizou-se e o bloco ocidental duvidava das genuínas pretensões polacas. E assim a Convenção ficou a marinar, durante mais de dez anos, num grupo de trabalho da extinta Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Além disso, alguns países consideravam-na redundante, pois os pactos internacionais aprovados na década de 1960 eram extensíveis às crianças. "Os pactos aplicam-se a todos, mas não olham para as crianças como um todo nem para as suas necessidades específicas", explica Catarina Albuquerque.

Quando finalmente foi adoptada, a Convenção "lançou uma certa dinâmica que deu muito mais visibilidade às questões das crianças", destaca a jurista e consultora, classificando-a como um "tratado inovador", por ser "o primeiro" a reunir direitos civis e políticos e direitos económicos, sociais e culturais.

"Isto só foi possível por causa da perestroika, que juntou os dois lados da guerra fria", que privilegiavam de forma diferente o direito à liberdade de expressão (civil e político) e o direito à educação (direito económico, social e cultural), por exemplo, continua Catarina Albuquerque.

A Convenção chega à maioridade com progressos significativos nas áreas da educação e da saúde das crianças. Ao nível legal, reconheceu a "condição especial" dos menores, proibindo, por exemplo, que lhes seja aplicada a pena de morte ou a prisão perpétua e que sejam detidos juntamente com os adultos.

"A Convenção dos Direitos das Crianças não é um conjunto de promessas, mas de obrigações. A sua aplicação é, em primeira instância, uma obrigação dos governos, mas exige o envolvimento de pais, professores, activistas sociais e crianças", vinca Marta Santos Pais, directora do Centro de Pesquisa Innocenti da Unicef, em comunicado divulgado a propósito do aniversário do tratado, a 20 de Novembro de 1989.

Conflitos armados

Tanto Catarina Albuquerque como Madalena Marçal Grilo reconhecem que "ainda há muito a fazer" para que a Convenção, que tem um carácter vinculativo, seja aplicada. Por exemplo, o documento não proíbe explicitamente os castigos corporais contra crianças. E a idade mínima para participar em conflitos armados persiste nos 15 anos, como estabelecido no artigo 38.º.

"Foi nitidamente uma concessão", sustenta Madalena Marçal Grilo, recordando que motivou, logo no primeiro ano de vida da Convenção, um protocolo adicional que aumenta a idade mínima para 18 anos, mas que só foi ratificado por 119 Estados, longe dos 193 que ratificaram a Convenção.

O segundo protocolo adicional já adoptado e já ratificado por 124 países diz respeito à venda e prostituição de crianças e à pornografia infantil - protecção que a Convenção já pressupunha, mas que agora se tornou "muito mais específica", apelando à "adopção de legislação que criminalize as condutas" e introduzindo o "conceito de apoio às vítimas", indica Madalena Marçal Grilo.

A presidente do comité nacional da Unicef realça que é preciso reivindicar que os direitos das crianças estejam no topo das prioridades das agendas políticas: através da avaliação do impacto das políticas e da aprovação de orçamentos específicos quanto ao que cada área governativa gasta na promoção dos direitos dos menores. "Às pessoas que gostam de dizer que as crianças são o futuro, digo que elas são também o presente. Pensá-las só como futuro é redutor e não as reconhece como sujeitos de direitos hoje", defende.

193 Estados que ratificaram a Convenção. EUA e Somália assinaram o documento, mas nunca o ratificaram.

Alguns dados

9,7
milhões de crianças morreram em 2006, muitas por doenças como o sarampo e a malária; mas a mortalidade infantil foi menos de dez milhões pela primeira vez.

30
segundos é o tempo que leva uma criança a morrer por ter sido infectada com malária.

15
milhões de crianças viviam com HIV-sida em 2006; só 15 por cento recebia tratamento.

1,2
milhões de crianças são traficadas anualmente.

246
milhões de crianças trabalham; 171 milhões em condições de risco.