Inês Schreck , Adelino Meireles, in Jornal de Notícias
Família Pimenta viveu até há um mês e meio no Bairro de S. João de Deus, no Porto. Os netos pouco saíam de casa, mas viram de tudo
Aos 15 anos, Vânia ainda experimenta uma confusão de sentimentos sobre o Bairro de S. João de Deus, no Porto, onde viveu até há um mês e meio. Pouco saía de casa, mas do alto da janela do último andar do bloco 4 viu de tudo. O tráfico, o consumo, as zaragatas com os ciganos, as rusgas da Polícia. Viu a mãe entregar-se à droga durante 14 anos. Viu dois tios serem presos por não resistirem ao dinheiro fácil do "pó". Viu os avós comerem "o pão que o diabo amassou" para a criarem, juntamente com o seu irmão mais novo.
Vânia e Bruno, de 9 anos, viram tudo isto, mas ainda têm saudades do bairro, principalmente do tempo em que tinham amigos e familiares na vizinhança, antes dos blocos começarem a ser demolidos. Foi ali que cresceram, no meio da miséria humana, e, apesar de tudo, acham que o S. João de Deus "era fixe". A irreverência da idade não os deixa dar valor ao sossego que agora têm.
Mas a avó não cabe em si de contente com o realojamento no Bairro de Santa Luzia, também no Porto. Da janela do minúsculo apartamento - onde até há mês e meio tomavam banho numa bacia na sala -, Lurdes Pimenta viu ainda mais "horrores" do que os netos. "Vi pessoas a morrerem à minha frente, vi pessoas a injectarem-se, vi pessoas a serem esfaqueadas", conta, pousando as mãos sobre o colo, conformada há muito com a miséria.
"Lurdinhas", como alguns lhe chamam, também viu a desgraça entrar-lhe pela casa vestida de droga. Em seis filhos, três acabaram "apanhados". Foram 14 anos a ver a filha "roubar, vender, fazer de tudo para comprar a dose", até que decidiu largar o vício e curar uma tuberculose. "Já está a ficar boa", nota Vânia, feliz com a recuperação da mãe. Durante outros tantos anos, Lurdes dividiu os fins-de-semana entre as prisões de Santa Cruz do Bispo e de Paços de Ferreira para visitar os filhos.
Mas antes de ter casa, Lurdes e o marido, José Fernando Pimenta, viveram tempos ainda mais difíceis. Conheceram-se no Bairro de S. João de Deus e o primeiro abrigo que tiveram não passava disso mesmo. Era "um barraco de plástico, onde só cabia o colchão". "Fazíamos como os escuteiros entrávamos de gatas", recorda. Só quando carregava o terceiro filho na barriga é que Lurdes conseguiu uma casa. "Foi uma vida de miséria, de fome e de tudo. Só não roubámos, graças a Deus", conclui, amargurada, 42 anos passados no "Tarrafal".
Enquanto a avó fala, Bruno vai metendo o nariz sempre que pode. Lembra-se bem da escola do bairro e de como saltava para a janela quando a Polícia aparecia. "Era fixe, subíamos os muros, íamos comprar gomas e havia sempre porrada com os ciganos. Levava mas também dava", recorda, orgulhoso do olho pisado que deixou num rapaz.
Por falar em asneiras, a conversa muda para a consola que Bruno, agora no 3º ano da EB1 da Caramila, quer comprar. A almejada "X-Box" ainda está longe de ser uma realidade, a contar pelo "cascalho" que conseguiu juntar no mealheiro. "Já tenho mais de dois euros", dispara, defendendo a poupança.
Os avós fazem o que podem para ceder aos desejos dos netos, mas os 300 euros de reforma de José Fernando, mais o parco abono das crianças, não chegam para tudo. Vale a ajuda das técnicas da Fundação Filos que Lurdes não pára de elogiar. Não fossem elas e não tinha como comprar os medicamentos que necessita.
Ao contrário do marido, Lurdes não tem reforma porque nunca descontou. Trabalhou numa fábrica têxtil, onde perdeu um dos dedos mindinhos numa máquina, e dividiu o resto da vida entre as limpezas domésticas e a venda ambulante de fruta, legumes e peixe.
"É preciso fazer as contas ao cêntimo", frisa, explicando que decidiu não dar semanada aos netos para que não se habituem a ter dinheiro. "Quando precisam de alguma coisa dou, se não for num mês é no outro". A Vânia costuma pedir para carregar o telemóvel com cinco euros. O Bruno também já tem um, mas não tem cartão. "É só para dar estilo", diz.