Leonete Botelho, in Jornal Público
O incumprimento culposo dos deveres parentais passa a ser crime num projecto que quer "proteger as partes mais frágeis" da família
O fim do divórcio litigioso baseado na culpa, proposto pelo PS, é rodeado de um conjunto de precauções cujo objectivo é "proteger as partes mais frágeis" da família, em especial os filhos, mas também o cônjuge que tiver uma situação mais débil - normalmente a mulher.
Nesse sentido, o projecto de lei ontem apresentado no Parlamento contém duas inovações radicais: o não cumprimento culposo dos deveres parentais passa a ser crime de desobediência. E o trabalho da mulher a favor da família pode passar a ser compensado economicamente no momento da partilha de bens.
No primeiro caso, a alteração ao Código Civil é profunda e não abrange só o divórcio, mas também a separação judicial de pessoas e bens e a nulidade ou anulação do casamento. Em vez de poder paternal, fala-se de responsabilidades parentais e determina que "as questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum" pelos pais.
Por outro lado, "pretende-se diminuir a ligeireza com que se desprezam as decisões dos tribunais e se alteram os hábitos e as expectativas dos filhos, nesta matéria". E por isso o incumprimento culposo das responsabilidades parentais passa a constituir um crime de desobediência, nos termos da lei penal.
No capítulo da protecção do cônjuge mais frágil, o projecto - desenvolvido a partir de estudos de dois especialistas da família, Guilherme de Oliveira e Anália Torres - introduz o conceito de crédito de compensação "sempre que se verificar assimetria entre os cônjuges nos contributos para os encargos da vida familiar".
E cria a obrigatoriedade do tribunal encaminhar os casais desavindos para serviços de mediação familiar, como forma de prevenir o divórcio ou ajudar a resolver conflitos.
Ao apresentar o projecto de lei, o líder parlamentar do PS, Alberto Martins, começou por confirmar o fim do divórcio litigioso e a criação da figura do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, baseado num conceito de divórcio-ruptura e já não um divórcio-sanção.
Igreja pode ser ouvida
Assim, o fim do casamento sem consentimento passa a ser aferido no tribunal com base em causas objectivas: a separação de facto por um ano, a alteração das faculdades mentais de uma das partes, a ausência sem notícias ou "quaisquer outros factos que, independentemente da culpa, mostrem a ruptura definitiva".
Entre as causas pode estar a violência doméstica - que a existir como crime é tratada em processo penal -, o adultério ou a violação de deveres do casamento, que continuam a existir. "Interessa é haver ruptura da vida em comum por factos objectivos e já não por razões subjectivas, como a culpa", explicitou Alberto Martins.
Questionado (na conferência de imprensa) sobre as críticas que a Igreja Católica tem feito, Alberto Martins frisou que o regime proposto diz respeito "ao casamento civil e tão-só". Embora admita a possibilidade de se poder ouvir no Parlamento "quem queira ser ouvido", o parlamentar deixou claro que o PS não abdica "da matéria estrutural" do projecto.
Coube a Rosário Carneiro, deputada independente e católica que integra o Movimento Humanismo e Democracia, responder às dúvidas da Igreja. "A preocupação fundamental deste projecto é a família, mas a família só é um bem enquanto é funcional", começou por dizer.
"Um divórcio representa uma ruptura, não é algo positivo, mas, verificada a disfuncionalidade da família, é prudente que o Estado ajude a acautelar e a regular as consequências dessa ruptura", prosseguiu.
Para concluir: "Este projecto olha para as causas objectivas dessa disfuncionalidade e tenta reduzir os danos dessa ruptura."