16.4.09

"A minha geração ainda não tinha passado por uma crise tão aguda"

Cristina Ferreira e Luís Villalobos, in Jornal Público

O líder do BES garante que a banca portuguesa "está sã e recomenda-se" porque o sistema financeiro nacional não foi intoxicado a partir dos Estados Unidos


No dia seguinte à divulgação das previsões do Banco de Portugal, Ricardo Salgado diz que o que se passa na Europa será mais grave do que a situação em Portugal.

Como avalia as últimas previsões do Banco de Portugal, que indicam que o crescimento em Portugal vai cair três e meio por cento?

Vêm em linha com o que se está a passar no resto da Europa. A minha geração ainda não tinha passado por uma crise tão aguda. Mas julgo que foi um balde de água fria para os portugueses, mas temos que ter em conta que o que se passa na Europa é tão mau ou pior do que se passa aqui, que somos uma pequena economia aberta como a nossa e exposta aos impactos externos. Agora temos que combater a crise e não entrarmos em estado de depressão psicológica e procurarmos contribuir para a recuperação portuguesa.

Existe risco de deflação em Portugal, tendo em conta a queda dos preços em bens de primeira necessidade?

Esta queda de preços é normal e transversal a toda a Europa e aos EUA, mas precisávamos de ter dados de mais um trimestre para se poder concluir com seriedade. A queda dos preços tem efeitos positivos, pois gera maiores economias para as famílias, que beneficiam da redução dos seus níveis de endividamento, com a baixa do preço dos combustíveis e das prestações da casa. As famílias estão a conseguir poupar, que é a base do desenvolvimento.

O crédito malparado não disparou em Portugal?

Aumentou mas mantém-se em patamares razoáveis, tendo em conta a crise. Em 2008, o hipotecário tinha subido 1,5 por cento, o crédito vencido ao consumo 4,7 por cento e o crédito vencido a empresas 2,18 por cento. Em Espanha, o crédito malparado hipotecário atingia já mais de quatro por cento.

Como é que a economia vai evoluir?

Há alguns aspectos positivos que vale a pena realçar. Primeiro, o nosso nível de desemprego é da ordem dos 7,6 por cento e mais baixo do que média europeia. O segundo aspecto é que o nível de endividamento do Estado é inferior à média europeia, nós estamos entre 60 e 65 por cento, enquanto a média europeia ronda 69 por cento. Por isso o Governo tem alguma folga para poder actuar sobre a situação económica.

Como é que a banca nacional tem reagido à crise?

O sistema financeiro português, apesar das críticas que são feitas em Portugal, em comparação com os restantes sistemas bancários europeus, está muito melhor. A crise teve a sua origem no sector financeiro dos EUA, que se propagou à Europa e depois à economia. Mas enquanto os sectores financeiros dos EUA e europeus, de uma forma geral ficaram intoxicados, o sistema bancário português não estava nesse grupo. Mas está a sofrer o impacto da crise económica no nosso país.

No final do jogo, a banca portuguesa vai sobreviver?

Está sã e recomenda-se e pode apoiar a economia nacional.

O que é que distingue a banca portuguesa da internacional?

Veja o write-off e os write-down registados nos sistemas bancários dos EUA e da Europa que já ultrapassaram 3,3 biliões de dólares e no nosso país isso não aconteceu, pois não tínhamos activos a necessitar de ser corrigidos. Não tivemos bolha na área imobiliária, nem subprime. E a "alavancagem" em Portugal andou sempre por níveis razoáveis e isso é mérito que se pode atribuir também ao Banco de Portugal.

Nos EUA, os bancos de investimento andavam a jogar com o seu próprio balanço...

A banca de investimentos norte--americana desapareceu, com excepção da Goldman Sachs. Todos os outros ou foram absorvidos ou fechados. Nunca assisti a nada assim, embora tendo vivido várias crises internacionais. Posso lembrar a de 1979, em que houve o problema dos petrodólares, que levou alguns bancos nos EUA a encerrar. Mas agora foram todos, americanos, europeus e outros. Nesse aspecto, a economia portuguesa está mais protegida até porque não tem um nível de industrialização pesada. Os países com muito desemprego são os que têm maiores níveis de industrialização, a nossa malha é mais ligeira, de PME, e isso melhora as circunstâncias. É claro que temos o problema de algumas indústrias estarem a ir abaixo, como a Qimonda, as do ramo automóvel, mas o seu impacto na economia não é comparável com os problemas que existem na indústria automóvel na Alemanha, França, Itália e até Espanha.

Já há luz ao fundo do túnel?

Acho que estamos numa fase intermédia da crise. A crise ainda dá sinais muito maus em relação à Europa, embora nos EUA esteja a estabilizar. Mas a intensidade das medidas que os EUA adoptaram está a criar grande nervosismo em termos dos credores. E corre-se o risco de saber se, quando a crise recuar, os EUA vão ter condições para absorver o aumento brutal de emissão da massa monetária. Isto não se está a passar na Europa.

O presidente Obama disse ontem que começavam a surgir na economia americana os sinais positivos para sair da crise...

O problema é que a crise se agravou num prazo muito curto. Em meados do ano passado e mesmo a seguir à falência do LB, o BCE ainda subia os juros. Os acontecimentos decorrem com grande celeridade e por isso não é de espantar que Obama diga que há sinais positivos. Porquê? Os índices de construção nos EUA voltaram a subir, e este é o primeiro sinal da reacção dos EUA. E já há pessoas a comprarem habitações outra vez, embora haja cidades que continuam a ser muito afectadas. E a estabilização do mercado imobiliário nos EUA é essencial para a recuperação.

A bolsa tem estado a subir...

Esse é um segundo aspecto e que nos EUA tem grande impacto. No início, a subida foi interpretada como tendo por fim cobrir as vendas a descoberto, com medo dos efeitos da subida dos mercados. Há bancos que já admitiram que os resultados neste trimestre possam ser melhores. Mas começa-se a pensar que é um sinal positivo, pois a bolsa geralmente tem tendência para antecipar as crises e as recuperações. É claro que há analistas, como o caso do sr. Mark Mobius, um guru dos países emergentes, que diz que a recuperação do mercado de capitais vai começar pelos países emergentes.

É a sua opinião?

Sim. Sobretudo quando a cimeira do G20 alocou ao FMI quase um bilião de dólares para apoiar os países emergentes. Mas eu diria que os sinais não são positivos, mas são mistos. E nos EUA já há um movimento de estabilização, mas não tenham dúvidas de que os EUA vão ter que reestruturar a indústria automóvel, que é um drama.

A crise pôs em evidência novos equilíbrios geoestratégicos, que já existiam, e que passam por países como a Rússia, Índia, China ou Brasil?

Estamos a assistir a uma deslocação dos factores de desenvolvimento de um eixo tradicional EUA-Europa para um eixo que passa a ser Ásia--Pacífico-América Latina e África. O sistema capitalista vai renascer e aparecer com uma face mais humana. Porque há consciência de que há e houve exageros que terão de ser corrigidos.