Sandra Afonso, in RR
A pandemia afastou dos cuidados de saúde os mais desfavorecidos e os profissionais de saúde estão exaustos e cada vez recebem pior.
Os médicos e os enfermeiros perderam 10% do salário real em dez anos, de acordo com os estudos “Recursos Humanos em Saúde” e o “Acesso a Cuidados de Saúde, 2022”, dos investigadores Pedro Pita Barros e Eduardo Costa.
De acordo com os dois documentos, apresentados esta terça-feira em Lisboa, a pandemia afastou dos cuidados de saúde os mais desfavorecidos e os profissionais de saúde estão exaustos e cada vez recebem pior. Assim, conclui-se que não basta abrir novas vagas e concursos, é preciso usar a transformação digital e reorganizar o trabalho nas unidades de saúde.
Entre 2011 e 2021, médicos e enfermeiros passaram por “três choques negativos sucessivos, lembra o economista Pita Barros: o ajustamento financeiro da troika, a reversão das medidas e a pandemia. Os profissionais mais novos, “têm trabalhado sempre em emergência, não sabem o que é trabalhar de outra de forma”, alerta, que acumulam com a perda salarial.
Sem ter em conta 2022, que é considerado um ano atípico devido à inflação acelerada, entre 2011 e 2021 o ganho médio nacional aumentou entre 5 e 10%. Já na saúde, “para os enfermeiros, acabou por baixar quase 10%, e no caso dos médicos do SNS, acabou por baixar mais de 10%”, diz Pita Barros.
Isto “não significa que estejam a ganhar menos do que ganha em média a população nacional”, quer dizer que enquanto “o resto da economia conseguiu fazer com que as pessoas tivessem um melhor salário real ao fim de dez anos, no caso dos médicos, não foi isso que sucedeu”.
Há ainda outra conclusão a tirar destas estatísticas (Nova SBE_KC Health_Recursos Humanos_2022.pdf (unl.pt): “aumentou o desfasamento (do SNS) para os profissionais do sector privado”, acrescenta Pita Barros.
É preciso atrair pessoas para o Serviço Nacional de Saúde, mas já não basta melhorar a remuneração. À Renascença, Pita Barros apresenta o problema como um cubo com três dimensões: o salário, o horário e a progressão.
São necessárias “condições remuneratórias, condições de trabalho”, mas também “flexibilidade suficiente para aceitar escolhas diferentes do envolvimento dos profissionais de saúde, no sentido em que alguns poderão querer mais ou menos tempo parcial, algum tempo dedicado à investigação, algum tempo só para eles ou, eventualmente, estar simultaneamente no sector público e no setor privado”. A terceira dimensão olha para o futuro, “tem que se oferecer uma perspetiva do que é a evolução ao longo da vida profissional”, avisa o investigador.
O relatório aponta para temas como a acumulação de trabalho nestas áreas, entre o público e o privado e a carga horária. Pita Barros sublinha que estes profissionais dão cada vez maior importância a aspectos como a parentalidade. Por outro lado, lembra que tem de haver “uma maior feminização das profissões de saúde, sem diferenças entre homens e mulheres.”
Este levantamento da saúde em Portugal surge de uma parceria da Fundação “la Caixa”, com o BPI e a Nova SBE, que analisou também o acesso aos cuidados de saúde (file:///C:/Users/sandraferreira/AppData/Local/Microsoft/Windows/INetCache/Content.Outlook/YC2BD206/Acesso%20a%20Cuidados%20de%20Sa%C3%BAde%202022%20v4.pdf)
População com menos rendimentos foi vítima do “efeito alicate”
No último ano registou-se uma diminuição no acesso da população aos cuidados de saúde. “Cerca de 14% da população não recorreu ao sistema de saúde”, um valor que “tem estado a subir de forma continuada desde 2019”.
Ao mesmo tempo, aumentaram os episódios de doença entre os que têm menores rendimentos. Pita Barros diz que foram vítimas do “efeito alicate”: estavam mais expostos à pandemia e sentiram mais a redução do poder de compra.
“Um dos lados do alicate é terem, provavelmente, condições laborais que não permitem o teletrabalho e acabavam por estar mais expostas, o que foi um risco para a saúde maior. Por outro lado, também as consequências económicas da redução da atividade”, explica.
Ainda segundo este trabalho, no último ano “a probabilidade de um episódio de doença na classe socioeconómica mais desfavorecida é de 72% para as mulheres e de 66% para os homens, comparando com 37% e 31% registados nas classes socioeconómicas mais favorecidas”.
Outro efeito da pandemia foi o aumento da utilização da linha telefónica SNS 24: “até 2020 tínhamos um uso regular mas a níveis relativamente baixos, com a covid passou a ter um novo impulso, que foi-se tornando mais permanente”, diz. Agora o SNS24 está a “estabelecer-se como uma porta de entrada do acesso dos cidadãos ao Serviço Nacional de Saúde”, defende o investigador.
É preciso avaliar se estas alterações de comportamento se vão manter ou se são temporárias. Há outras, que apenas se acentuaram, como a automedicação (43%), numa altura em que muitas pessoas acumularam medicamentos, a maioria (57%) esperou que melhorasse.
Um indicador que também aumentou, em linha com o que tem vindo a acontecer, é a opção por genéricos. Metade das famílias com menores rendimentos teve dificuldade em comprar medicamentos no último ano. A maioria optou por estes medicamentos mais baratos: o recurso a genéricos passou de 33% em 2019 para 56% em 2022.
Urgências (temporariamente) aliviadas
Será mais um efeito pontual, que resulta da pandemia, em 2022 “apesar da ligeira subida face aos níveis de 2020 e 2021, a proporção de pessoas que procura os serviços de urgência permanece abaixo do pré-pandemia”.
Os utentes começaram a regressar ao setor público em 2021, depois da queda registada em 2019 e 2020. Ainda assim, desde o início da pandemia que há uma “diminuição na procura de respostas nos cuidados de saúde primários”.
Muitos, como foi apontado antes, trocaram a deslocação aos serviços pelo atendimento telefónico. “Verifica-se um aumento expressivo na utilização da linha de atendimento SNS24, consolidando a importância deste canal: a proporção de pessoas que reportou ter recorrido ao SNS24 aumentou de 3% para 28% entre 2019 e 2022”.
Sobre a avaliação da nova gestão do Serviço Nacional de Saúde, Pedro Pita Barros admite que será uma variável a introduzir no próximo ano, mas ainda falta muita informação, como a clarificação dos estatutos da Direção Executiva.