17.3.07

Esfumaram-se os portugueses da Ribeira de Navarra

Ana Cristina Pereira, em Navarra, in Jornal Público

Depois da operação que culminou com a detenção de 16 angariadores, são poucos os trabalhadores que se vêem nas ruas da região espanhola

A Ribeira de Navarra funciona muito com trabalhadores temporários. Só portugueses circulam uma média de cinco mil por ano, atesta ao PÚBLICO Helena Albiol, das Comisiones Obreras. Em 2006, a Guarda Civil "libertou" 100 trabalhadores temporários explorados e deteve cerca de 20 intermediários. Os nomes dos indivíduos detidos, libertados depois de ouvidos por um juiz, repetem-se de umas operações para as outras. E há trabalhadores que se mantêm sob a sua alçada, por não entenderem o grau de exploração a que são sujeitos ou não vislumbrarem alternativa. Pelo contrato de trabalho colectivo, devem receber 5,99 euros por hora (10,40 em caso de horas extra). E as empresas têm de "garantir que têm alojamento digno". Esta semana, pela primeira vez, a polícia encontrou provas para implicar empresários (sete).

Ao invés de entregar o salário directamente aos trabalhadores, a cooperativa Esperanza, por exemplo, dava 8,50 euros por hora ao intermediário para que este pagasse ao trabalhador e lhe fornecesse alojamento e transporte sem cuidar das condições de alojamento. Na cozinha e sala de jantar dos trabalhadores, há uma panela em cima da mesa laranja, apenas com batatas lá dentro a Arguedas - onde residem nove dos 16 subcontratadores agrícolas anteontem indiciados por manterem em regime de "escravatura encoberta" 91 pessoas de várias nacionalidades, entre os quais 79 portugueses, na Ribeira de Navarra, Espanha - parece ter amanhecido com ordem para calar. Nas praças e nas ruas, dois pares de olhares vigiam, à descarada, cada movimento da imprensa.Vozes de residentes espanhóis apontam para prédios degradados controlados por portugueses de etnia cigana.

Na Calle Ajardinada, uma romaria de gravadores e blocos a tentar inquirir quem se esconde atrás da porta de uma casa com carne de porco a secar à janela. Do interior, a voz feminina a todos enxota. Pode sair para falarmos um bocadinho? "Não quero." Porquê? "Porque não me dá la gana [sic]." Não quer falar do que se passou? "A mim não passou nada [sic]." E aos outros? "Não."

De manhã, de manhãzinha, a dona do bar Victor, frequentado pelos trabalhadores temporários portugueses, até revelou disponibilidade para comentar a designada operação Lusa, mas alguém lhe ligou para o telemóvel e ela abandonou o estabelecimento a correr. O marido tomou o seu lugar.

"Falar para quê?", questiona um espanhol que prefere não ser identificado por receio de represálias. Dá-lhe "pena" ver alguém trabalhar nove horas por dia, seis dias por semana, em troca de dez a quinze euros por semana. Mas muitos dos agora indiciados já o tinham sido ainda há um ano, quando a polícia "libertou" 43 trabalhadores e deteve nove subcontratadores. "Prenderam-nos, soltaram-nos e eles continuaram a fazer o mesmo. Como acontecerá agora."

Balde para tomar banho

A melhor pista acaba por ser dada por um português que trabalha na construção civil. Manuel Lino não tem medo dos angariadores, trabalha directamente para um espanhol. Indica uma casa brasonada da Calle Real: "Trazem-nos para aqui e eles aqui vêem-se sem dinheiro, sem nada. Têm de aguentar."Ninguém diria que o prédio é habitado. Parte dele ruiu. Foram-se os tectos, foi-se o chão. Mas José, o único espanhol ali residente, partilha um andar com quatro portugueses. Os "portugueses estão a trabalhar com o senhor que mora no piso de baixo". Saíram cedo, muito cedo, para um campo que José não sabe ou não quer precisar. O homem que mora no andar inferior é o "dono da casa", é o angariador.

José, como os outros, faz "o que for preciso" no campo - couve-flor, tomate, alcachovas, pessegueiros... Pergunta-se-lhe quanto ganha por semana e ele solta uma gargalhada. "Isso não digo." Isso não pode dizer. O homem, de 48 anos, mostra o seu quarto de parco mobiliário. Há um colchão, uma caixa a servir de mesa-de-cabeceira e um velho sofá que um dia alguém atirou ao lixo e outro alguém recolheu. E a roupa? José abre uma porta. No ar, uma corda com vestes; no chão, lixo e um balde "para tomar banho". Salários à parte, a vizinhança de José nem precisaria de falar para acusar falta de condições dignas. Num quarto, três colchões e uma caixa tipo mesa-de-cabeceira com um boneco e um santo. "Estavam ali três portugueses, mas um foi embora." O homem que resta tem umas cuecas sujas e uma camisa ainda mais suja no estendal.

Camas sem lençóis

Há um rapaz que dorme num quarto agora trancado e um outro com igual hábito. No quinto quarto "estavam dois portugueses, mas um foi embora". E o que resta é o que está melhor. Fica perto da lareira e do velho televisor, que sempre dá alguma imagem, ainda que má. Não tem é lençóis. Nem ele nem os outros. Mas "isso é o de menos". Pior o banho de água fria, pior a comida.

O piso inferior, o dos subcontratadores, tem mais móveis. Ao lado do espaço ocupado por eles, a cozinha dos trabalhadores e a sala de jantar. Há uma panela em cima da mesa laranja. Lá dentro, batatas. "Tudo" o que José tinha para comer. A grande época agrícola na Ribeira de Navarra está a terminar, explica um homem na cooperativa La Esperanza, ao chegar à localidade de Valtierra, onde moram dois dos subcontratadores indiciados. O que requer agora mais mão-de-obra temporária é a vinha, que está em altura de podar. Os temporários transferem-se para La Rioja e Alava (País Basco). Mas não é só por isso que não se encontra portugueses a trabalhar nos campos da Ribeira de Navarra.

Depois de a Guarda Civil vasculhar as propriedades da Esperanza, os portugueses que ali trabalhavam foram corridos. A empresa Castel Ruiz, em Tudela, fez o mesmo. No meio de um campo de alcachovas, o velho Mariano Monteiro nem sabia da operação. Corria o boato que se recusaram a trabalhar. A noite cai e os portugueses da casa brasonada na Calle Real não regressam. Está tudo escuro. Terão mudado de sítio, como uns que durante a tarde arrumavam os cacos numa carrinha? A noite cai e o ambiente torna-se mais pesada no bar Victor. "O que você precisava eu sei", diz um angariador a uma jornalista. "Estou a ameaçá-la, estou." E aos outros?