Catarina Gomes, in Jornal Público
Chico e Tino foram para Espanha em busca de trabalho mas voltaram de mãos a abanar. Como eles, há milhares de portugueses
"Estamos aqui por um objectivo: conseguir alguma coisa. Então precisamos de muita força e coragem e confiança, principalmente em Deus, o Poderoso." Para Tino e Chico, a mensagem no papel colado com fita-cola numa das paredes de tabique não foi inspiração suficiente para os fazer esquecer o cenário encontrado. Mal os operários portugueses viram o sítio onde tinham de ficar a viver... "Chico, começa tu a contar." A história é de Francisco Gomes Nunes e Florentino Gonçalves, "amigos de garotos" que se reencontraram em adultos numa furgoneta cinzenta que os conduzia a Espanha, em busca de "melhoramento de vida".
A animá-los a todos - seguiam com eles mais três portugueses e um ucraniano - na viagem de mais de 300 quilómetros havia a promessa de trabalho bem pago nas obras, mil euros por mês (o dobro do que ganhariam em Portugal por igual trabalho), comida e alojamento "em pensão ou apartamento". A cada fim-de-semana, a mesma furgoneta ficava de os trazer de volta às suas aldeias, casas e famílias, na região de Mangualde (concelho de Viseu). Era o que lá devia vir escrito nuns papéis que não leram e assinaram muito à pressa.
Tino e Chico reconheceram-se um ao outro na carrinha e a mais um outro conterrâneo, Adérito, que na aldeia natal tem um rebanho de cabras. Outro companheiro de viagem era "um ucraniano que falava português", Wassen, a quem simplificaram o nome para Vasco, e mais dois portugueses desconhecidos a quem perderam o rasto porque foram para obras noutros pontos de Espanha.
Gente de "toda a raça"
A viagem deixou-os a todos no sítio que seria a sua casa durante os meses de jornadas que iriam ter pela frente, na construção das vivendas n.ºs 17 e 20, numa urbanização de 1400 casas, nos arredores da cidade espanhola de Valladolid. Entulho e lixo até à porta, colchões com nódoas deitados pelo chão, frigoríficos velhos, paredes de tabique onde o frio se sente como na rua - "ainda bem que levámos cobertores" -, duas fogueiras onde se acumulam pedaços de pacotes de sumo e iogurtes semiqueimados, fios de electricidade a servir de estendal. Foram estas as condições que receberam Tino e Chico, mais a vintena de gente de "toda a raça" com quem partilhavam o espaço sobrelotado.
Na carpintaria abandonada transformada em alojamento conviviam portugueses, ao lado de brasileiros, ucranianos e africanos lusófonos, todos trazidos por "empresários portugueses". Na "casa" havia que esperar a vez para usar o único fogão eléctrico e as duas casas de banho que Chico e Tino trataram de desinfectar com a lixívia que compraram no supermercado de esquina. "Se estão minimamente limpas, foi porque nós as limpámos.
"Do grupo de seis da carrinha, só eles se queixaram a um dos "sócios" de uma firma cujo nome desconhecem, que seguia com eles. "Estes gajos querem berços de ouro. Espanha não é Portugal" - foi a resposta que tiveram. Pelo telemóvel disse Chico à mulher: "Uma loja de porcos era melhor que isto." Contou-lhe também que tiveram de pagar a comida do seu bolso. "Era um pontapézito para melhorar a vida, mas correu mal.
"Chico é natural de terras de emigração. A sua, como as aldeias vizinhas, fica cheia em Agosto de familiares que nos anos 1960 abalaram para a Alemanha. Para tentar melhorar a vida, pensou, era agora, aos 46 anos, e não aos 60 ou 70. O motivo de partida era o cenário que os rodeava: "Os trabalhos em Portugal estão parados." Orgulhoso em frente da sua vivenda de dois andares, Chico não se conforma com o que encontrou: "Tenho aqui esta casa tão grande e dão-me uma cocheira para viver."
Aguentaram os dois uma semana de trabalho, de 26 de Fevereiro a 2 de Março, dia em que a carrinha voltava ao fim-de-semana a Portugal. Chico e Tino embarcaram nela para não voltar. Pelo caminho ainda tiveram que contribuir para a gasolina e um dos trabalhadores ajudou na multa de estacionamento. O salário dessa semana de má memória ficou por pagar, contam os trabalhadores. "Há-de haver centenas como nós, ao engano."
"Alguns vivem pior"
Contactado pelo PÚBLICO, José Pina, um dos três subempreiteiros que lhes arranjaram trabalho, responde quanto à falta de pagamento: "O mês já acabou? Abandonaram o trabalho." Garante que lhes foi dada comida e, quanto às condições, diz que "se calhar vivem num palácio". "Alguns portugueses vivem em piores condições." Os trabalhadores assinaram contratos de seis meses e nem sequer fizeram um, queixa-se José Pina. "Não temos nada a pagar, só deram prejuízo", diz Armando Gomes da Silva, outro dos sócios, referindo o seguro de 70 euros que tiveram de pagar por cada homem.
Tino e Chico estão de novo em Portugal à procura de emprego, em Espanha. Regressaram com o PÚBLICO a Valladolid e o sítio onde viveram está igual. Na obra, o encarregado de obra, português, barra-lhes a entrada. Adérito, o companheiro de viagem, lá continua a trabalhar nas vivendas 17 e 20, à espera que lhe paguem. Acabrunha-se e diz que não fala porque "estão aí os graúdos". Vasco, "o ucraniano que fala português", faz o mesmo - e continua a não receber salário. "Tenho pena deles, mas não lhes posso valer", dizem Tino e Chico já de costas voltadas. Lamentam sobretudo "o triste do ucraniano, que andou com uma sandes o dia inteiro". De regresso a Portugal, os amigos vão comentando o que vêem na estrada: "Olha, mais uma carrinha de portuguesinhos."
Reparam também num bando de "estorninhos", mas são as gruas que vêem no céu o que mais lhes chama a atenção: "Olha, só ali estão dez gruas. Onde há gruas há obras", comentam. "Sabes como se diz esquecer em espanhol?", pergunta Tino, para logo responder: "Olvidar."
70 mil trabalhadores portugueses rumam todos os anos a Espanha para trabalhar na construção civil. São estimativas da Federação de Metal e Construção da União Geral de Trabalhadores espanhola