16.3.07

Sem-abrigo dorme há anos na escada da Universidade

Tânia Moita, in Jornal de Notícias

Apesar de o achar "chato", continua a ler "O Som e a fúria", de William Faulkner, mas confessa ter gostado muito mais de "A república dos corvos", de José Cardoso Pires, que leu, entre uns "finitos e conversas com amigos", nos últimos tempos, não em casa, que o conforto que tem não dá para tanto, mas em esplanadas e cafés. Joaquim Campos dispensa uma casa, na verdadeira acepção da palavra, e ocupa um canto da Cave das Químicas, no edifício da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra(UC).

Não tem sala, nem cozinha, nem casa de banho, mas à cabeceira da sua cama - um estrado de madeira com colchão - estão os livros que lhe vão oferecendo ou que vai encontrando "por aí". E a Bíblia, que vai lendo apesar da confessa condição de "desassociado". Natural de Tamengos, concelho de Anadia, Joaquim Campos adoptou a cidade de Coimbra, concretamente a Alta, para viver. "Não é na rua, não senhor", explica, mas sim num canto, por baixo de um vão de escada, na Cave das Químicas, que ocupou há cerca de oito anos, logo depois de deixar de arrumar carros na Avenida Fernão de Magalhães por força de se tornar beneficiário do rendimento de inserção social.

Aos 47 anos, Joaquim Campos, de pantufas rotas, mas de camisa, gravata e pulôver, tem no modo de vida que escolheu tudo o que precisa "uma sopita", na Cozinha Económica, que serviu para adoptar freguesia "no bilhete de identidade", ou ali mesmo, na cantina vizinha, tempo para ler e escrever "umas memórias", e, sobretudo, liberdade. "Não gosto de horários, de estar fechado, não sou pássaro de gaiola. Gosto de andar à noite", explicou, justificando a volta que deu à vida, depois de completar o 11.º ano de escolaridade e frustradas as intenções de seguir um curso de Física ou de Química.

"Na altura não tinha possibilidades, agora que tenho, tenho aqui casa e tudo, é mais difícil", afirma, explicando que já fez o exame extraordinário de admissão à (sua) UC. Mas o português garantiu-lhe a reprovação. "Sou um bocadinho fraco. Mas ando com ideias de me inscrever na Universidade Aberta, talvez em Matemática ou Ciências Sociais", conta. Casa, tem a da mãe, que não é opção, por desavenças familiares. Instituições? "Nem pensar ".

Para além de Joaquim Campos, volta e meia, há mais inquilinos a dormir nos cantos das "Químicas", "emparedados" com grades e cobertores e que, a caminho do auditório da Reitoria, espantam os ilustres convidados internacionais que ali participam em conferências. Actualmente há apenas mais um vão de escadas ocupado, mas o ano passado até um estudante ali dormia. "Lavava roupa à mão e tudo", contam as funcionárias da limpeza. Se alguns chegaram a surpreender "quando iam tomar banho ao repuxo em cuecas", Joaquim não quer dessas confusões. "Quando há alguma conferência, avisam-me e eu mudo tudo para outro canto, escondido. Depois volto para aqui", segredou ao JN. A Reitoria diz que já alertou instituições sociais para o problema e que não pode fazer mais do que isso.