José Manuel Fernandes e Raquel Abecasis (Renascença, in Jornal Público
Vítor Bento, da Sedes, afirma que "o Estado foi tomado pelos partidos e este é um problema antigo e transversal". E ninguém percebe que "o Estado é uma coisa e o governo outra"
Há pouco mais de uma semana, a Sedes divulgou um retrato arrasador do país. "Sente-se hoje na sociedade portuguesa um mal-estar difuso, que alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional", concluía o documento da Sedes, uma das mais antigas associações cívicas portuguesas.
Porquê este documento neste momento?
Porque entendemos que existe um mal-estar difuso, difícil de definir de forma muito precisa.
Há sinais desse mal-estar? As manifestações?
Não, e não gostaria de o associar a essas movimentações. Há reformas que o Governo tem de fazer e que suscitam reacções, porque implicam sacrifícios hoje em nome de bens futuros. Aquilo a que nos referimos foi à sensação de descontentamento, de desânimo, à ideia de que não há alternativa e, daí, termos envolvido todo o espectro político.
Quando a Sedes nasceu, no final do anterior regime, estava-se num beco sem saída. Hoje a Sedes parece diagnosticar uma situação semelhante, sem saídas e com um enorme divórcio entre a população e os que governam, os "de cima". É por isso que falam de poder haver uma crise social?
É, mas é importante não confundir o momento presente com o final do marcelismo. A situação não é comparável, porque hoje há uma liberdade que não existia na altura. Sem essa liberdade não era possível mudar o regime por dentro. Agora, apesar de tudo, os cidadãos possuem válvulas de escape para o seu descontentamento, podem manifestar-se, mudar de governo.
Mas acabou de referir que não se viam alternativas. Os dois principais partidos são iguais?
Não serão, mas a percepção é que não oferecem diferenças ao nível da governação. Para mim este é mesmo um dos principais problemas, pois a tentativa de criar diferenças artificiais tem aumentado o descrédito. As condições em que se tem de governar, as regras europeias e os condicionalismos internacionais também não permitem que os partidos se diferenciem muito.
Em Espanha há clivagens claras.
A situação é diferente. Em Portugal o que se passa é que, como os partidos têm consciência de que podem diferenciar-se pouco no Governo, quando estão na oposição fazem promessas que não podem cumprir. Isto pode funcionar uma ou duas vezes, mas à terceira os cidadãos deixam de acreditar nos políticos. O que fazia sentido é que o debate incidisse mais sobre o essencial, sobre os problemas que exigissem soluções de longo prazo, que houvesse pensamento estratégico. Um exemplo simples: algum português sabe o que é que o país queria durante a negociação do Tratado de Lisboa para além de que fosse assinado em Lisboa? Alguém discutiu sobre o sentido em que queríamos, em nome do interesse nacional, que a Europa evoluísse?
O documento vai mais longe. Não colocam a questão do bloqueio como o do tempo de Caetano, mas referem que há o risco de derivas populistas, caciquistas e personalistas. Isso é quase dizer que a democracia pode estar em risco.
A democracia representativa, porque é essa que quisemos defender no documento. Há hoje muitos apelos a formas de democracia directa, mais popular, que entendemos perigosas e violadoras do espírito republicano. Foi Norberto Bobbio que escreveu que não há nada mais perigoso para a democracia que o excesso de democracia. A democracia exige intervenções mediadas, e esse é o papel dos partidos. Mas, quando os partidos ficam desacreditados, verificamos que os eleitores se viram para figuras isoladas. Isso sucedeu já nas últimas eleições autárquicas em concelhos como Gondomar, Felgueiras ou Oeiras, voltou a suceder nas presidenciais, e aconteceu de novo nas últimas eleições para a Câmara de Lisboa. Os eleitores viraram as costas aos partidos e preferiram apelos pessoais. Esse é o caminho que pode levar a um qualquer tipo de peronismo, por exemplo.
Para isso não contribui outro mal que apontam no documento, a falta de qualidade de muitos dos quadros dos partidos?
Eu diria que falta qualidade suficiente. Seria demagógico dizer que as pessoas que lá estão não têm qualidade, mas muitas das que detêm o poder na estrutura não têm mesmo qualidade. Nos partidos há muito pouco pensamento, pois desapareceram os gabinetes de estudo. Quando um líder está na oposição, não encontra quem queira trabalhar com ele.
Por que é que isso sucede?
Porque não se querem comprometer. Trabalham no Estado ou em empresas que trabalham para o Estado. O Estado tem uma presença excessiva em Portugal e isso nota-se até na liberdade dos quadros públicos e privados ajudarem a oposição.
Isso significa que essas pessoas podem ser prejudicadas? Podem perder consultadorias, promoções, negócios, só por darem opiniões críticas?
O Estado tem uma presença asfixiante sobre a sociedade, e não estou a falar deste ou daquele governo, estou a falar do governo que lá estiver. Quase toda gente depende do Estado e o Estado tem poder de retaliação e exerce-o. Não há mecanismos de independência...
O que disse é muito grave...
Pois é, mas a verdade é que o que devia acontecer - perceber-se que o Estado é uma coisa e o governo outra - não acontece. O Estado foi tomado pelos partidos, e este é um problema antigo e transversal. Pior: aceita-se como natural que os seus sejam escolhidos com base em confiança política...
Deviam ser apenas julgados pela competência e lealdade?
Sim, pois eu nem sei o que é confiança política. Eu, com os meus accionistas, tenho deveres de lealdade, como os tive quando fui director-geral no Estado. Só espero é que confiem na minha competência, mesmo que mudem. Nunca percebi o hábito de os directores-gerais porem os lugares à disposição, quando o ministro muda. Isso é assumir que não se é suficientemente competente para o cargo.
"Algum português sabe o que é que o país queria durante a negociação do Tratado de Lisboa para além de que fosse assinado em Lisboa?"
Comunicação social
Uma competição que rebaixa os padrões morais
Este documento também é muito crítico para a comunicação social. Porquê?
A comunicação social é fundamental, mas, sem regras, temos como que uma espécie de competição pelo rebaixamento do padrão moral. Se um órgão de informação aplica um golpe baixo e isso lhe traz vantagens, então os outros acabarão a fazer o mesmo.
Isso é mais evidente nas televisões, que têm um papel formativo que, em boa parte, substituiu o das famílias, da escola ou das igrejas. Se cada um tentar pisar o risco, há um momento em que deixa de haver valores morais de referência.
Mas referem também o jornalismo de insinuação...
É verdade, porque o caminho que está a ser seguido leva a que os únicos valores de referência sejam os da lei. Ora mal vai uma sociedade onde esse seja o único padrão de referência. É que isso levaria a uma teia legislativa asfixiante e uma litigância sem fim, pelo que é importante existirem outros reguladores sociais e valores morais.
E o jornalismo de insinuação?
Todos sabemos que existe, e que procura sempre pisar o risco, misturando a verdade com a insinuação. Todos nos lembramos, por exemplo, do que foi O Independente do tempo de Paulo Portas. Passaram a valer métodos que antes não eram aceites, o que leva a que muitas pessoas prefiram não entrar na vida pública. Sobretudo porque a Justiça é ineficaz e não funciona para separar o trigo do joio.
Se um pequeno jardim estiver abandonado, ninguém o limpa, chamam a câmara
A crise social de que falam não terá relação com as actuais dificuldades económicas? Por que não falaram dela?
A Sedes já se pronunciou muitas vezes sobre problemas económicos e, desta vez, entendemos que era mais importante focarmos outros pontos. Neste documento a questão central é a crise de confiança, pois a confiança é um valor central em qualquer sociedade. É o valor que cria capital social. Sem confiança, a sociedade começa a desagregar-se, os diferentes grupos deixam de falar uns com os outros e os que se sentem marginalizados podem optar pela criminalidade. Um bom exemplo de uma sociedade com esse tipo de problema, onde coexistem duas sociedades que não se revêem uma na outra, é o Brasil.
Em Portugal isso não estará já a suceder no divórcio entre os "de cima" e os "de baixo", podendo até esta clivagem não ser económica mas antes reflectir o ter ou não acesso ao poder?
Se o sistema político não funcionar como elemento agregador e garante da confiança, o risco de tudo se esboroar aumenta. Isso não se traduz necessariamente numa revolução, mas podem surgir formas de manifestação anti-sociais como o hooliganismo ou as manifestações nos subúrbios franceses.
Não será o próprio Estado que estimula a crise de confiança, ao multiplicar leis que procuram regulamentar tudo, como se não tivesse qualquer confiança na autonomia e no poder de decisão dos cidadãos...
Com isso o Estado contribui para a diminuição do capital social, o que, para utilizar uma linguagem de economista, leva a que aumentem os custos de transacção. Qualquer contrato exige mais tempo e mais trabalho, porque não confiamos na boa-fé da outra parte, ou seja, para atingirmos os mesmos resultados, temos mais custos, mais desperdícios. Para ultrapassar esta situação é importante que o Governo e os partidos passem a olhar para além da espuma dos dias.
Diz isso por causa da reacção intempestiva do Governo ao vosso documento?
Também, porque o documento não era dirigido ao Governo, ou a este Governo em particular. Até porque entendemos que, se o actual clima se mantiver, pode mudar o Governo que nada de fundamental se alterará.
Esta semana José Miguel Júdice comentou o vosso documento dizendo que lhe faltava um outro lado, o da sociedade civil. Ele fala do "nós", do "nós" cidadãos.
Concordo com o reparo que ele faz, mas nós tivemos de fazer opções, pois o documento não podia ser demasiado extenso. O ponto em que ele tem razão é uma componente cultural, muito nossa, de falta de valores. Estou convencido, por exemplo, que muito do abandono escolar se deve apenas a falta de ambição. Muitos satisfazem-se com a vida que levam e por isso deixam de estudar.
Isso não é contraditório com o sucesso do programa Novas Oportunidades?
Esse é um bom programa que funcionou, porque os mais velhos, os que não tinham estudado, foram percebendo que assim não dava. Ora, tudo isto deriva de não sermos suficientemente exigentes, de não termos uma cultura de excelência. Sou de uma geração em que a única forma de progredir na vida era estudar e, por isso, vindo de uma família humilde, esforcei-me sempre para ser o melhor aluno. E os meus referenciais eram rurais.
Como é que isso aconteceu?
Porque se tem uma cultura de facilitismo. As pessoas acham que, se tiverem um problema, o Estado o há-de resolver. Se o jardim de um quarteirão estiver ao abandono, não se organizam para o limpar e arranjar, ficam à espera da câmara. Há culpa dos "de cima", mas também dos "de baixo", que se demitem, que acham que deve haver sempre alguém a tutelar as acções.
Se tivesse que fazer uma recomendação final, seria a de mais senso comum?
Julgo que é o Descartes que abre o Discurso do Método dizendo que o bom senso é o único bem realmente escasso de que ninguém acha que tem falta, mas não há dúvida que em muitos pontos, designadamente na forma como se legisla e se transpõem directivas comunitárias, se aconselharia um pouco mais daquilo a que os ingleses chamam common sense.