2.2.09

"A situação de crise pode levar a perdas em saúde"

Alexandra Campos e Catarina Gomes, in Jornal Público

Morremos de mais por cancro, tomamos ansiolíticos em excesso e os médicos começam a faltar. Maria do Céu Machado aponta prioridades


Há metas de saúde que se ultrapassaram, outras que estão longe de ser alcançadas. As 104 páginas do Plano Nacional de Saúde apontavam para 2010 como o ano limite para todos os objectivos. Médica há 37 anos, a alta-comissária da Saúde, Maria do Céu Machado, faz o balanço e alerta para os tempos de crise. Os idosos e a saúde mental são dois motivos de preocupação. E é preciso saber por que é que os portugueses consomem tantos ansiolíticos e antidepressivos. O seu fácil acesso não ajuda, diz a pediatra.

Uma das missões da alta-comissária da Saúde é aplicar o Plano Nacional de Saúde. Para que é que serviu?

O primeiro Plano Nacional de Saúde obrigou-nos a fazer uma fotografia da saúde em Portugal em 2001. Basta pensar nos problemas para haver um ganho, mas não chega. É preciso monitorizá-lo.

Já admitiu que este plano era demasiado abrangente. Como é que vai ser o próximo?
Vai ter que ser mais pequeno e dirigido a situações mais específicas. Os indicadores são todos calculados a nível nacional e regional e há diferenças. O facto de haver desvios de uma região relativamente à meta nacional não quer dizer que aí não tenha havido evolução. Por exemplo, a região de Lisboa e Vale do Tejo tem ainda uma mortalidade por sida superior à nacional, mas está a melhorar. Tem que se ter metas regionais. O próximo plano terá que centrar-se na equidade e nas bolsas de pobreza, identificando os grupos mais vulneráveis e tendo prioridades específicas para esses grupos, e aí deverão entrar as crianças e os idosos, os imigrantes, etc.

Como é que se chega a estes grupos?

Estes grupos mais vulneráveis são muitas vezes os que menos procuram cuidados de saúde, por serem ilegais no caso dos imigrantes, por não terem noção da gravidade da situação ou ignorarem que uma consulta precoce pode evitar que cheguem à fase grave da doença. Quando chegam aos serviços de saúde, já estão numa situação que, às vezes, é irreversível ou com consequências. Sou muito defensora dos cuidados de proximidade, o que não é propriamente ter urgências e maternidades abertas.

É preciso ir ter com as pessoas?

Temos muito bons resultados com experiências pontuais de unidades móveis de saúde e prevê-se unidades de cuidados na comunidade só com enfermeiros. É preciso que o profissional de saúde, e pode ser o enfermeiro - até começa a haver excesso de enfermeiros -, chegue às pessoas para ver se é necessária uma consulta médica. Faz todo o sentido haver equipas que se deslocam, pode ser um carro com dois enfermeiros, um enfermeiro e um assistente social, a um bairro ou comunidade para perceber que aquela e aquela estão grávidas e não foram ainda a nenhuma consulta, medir a tensão, fazer vacinas, o teste da sida, perceber que há uma criança mal nutrida, um idoso em situação de vulnerabilidade.

A saúde em Portugal está demasiado centrada nos médicos?

É considerado um índice de desenvolvimento da população procurar e aceitar ser atendido por enfermeiros. Noutros países, muitas vezes há uma primeira aproximação a uma consulta de enfermagem e só depois se decide se é preciso uma consulta médica. Ouve alguém dizer que foi a uma consulta de enfermagem? As pessoas queixam-se que há falta de médicos, que não há consultas, que vão às urgências e estão muito tempo à espera. Isto passa obviamente pela confiança da população.

Há ou não falta de médicos no país?

Os rácios de médicos não são distantes de outros países, mas há vários aspectos que nos últimos anos têm agravado a situação. Primeiro, as reformas muito precoces. Se até 2013 a situação se vai agravar, talvez seja preciso, especificamente para os médicos - uma vez que há uma faixa da população que vai ficar sem médico -, garantir que se continuarem a trabalhar mais três ou cinco anos terão as mesmas condições, o que poderia ser justificado por razões de saúde pública.

Mas a situação é assim tão má?

A situação vai ser dramática sobretudo ao nível dos médicos de família. As grandes saídas das faculdades foram em 1974, 1975, esses médicos têm 55 a 60 anos. Estão numa idade em que podem ou não reformar-se.

Disse que os ganhos de saúde em Portugal nos últimos anos devem-se muito à melhoria das condições de vida das populações e que pode haver retrocessos devido à situação económica actual...

Toda esta situação de crise pode levar a perdas em saúde, mesmo em áreas nas quais tem havido ganhos. Um dos problemas para o qual Portugal ainda não acordou é o dos idosos. Há reformados relativamente jovens, com reformas menos boas e com famílias sem condições para sustentá-los. É notícia quase todos os dias que muitas famílias deixam familiares nos hospitais. Os empregos são precários e as pessoas não podem faltar dois a três dias, porque o pai ou a mãe estão em convalescença. Tem que se estar atento à área dos idosos. E tenho grande preocupação em relação à saúde mental.

A crise também pode ter efeitos a esse nível?

Vai ter com certeza. Basta aumentar o desemprego e piorarem as condições de vida. Não tenho evidência científica do que vou dizer, mas tenho visto nos últimos anos, como pediatra, maior desemprego no sexo masculino. Há uma grande dificuldade de os pais aceitarem a situação, é muito mais fácil a uma mulher ocupar-se do que um homem. São situações gravíssimas nas famílias, com efeitos na mulher e nos filhos, e multiplicam-se.

O consumo de ansiolíticos e de antidepressivos é um dos indicadores que, em vez se aproximar da meta, está cada vez mais longe.

É urgente fazer-se um estudo para perceber por que é que isto acontece. Se é porque somos um povo tão triste ou se é porque a população não está esclarecida ou não há formação, sob o ponto de vista da saúde mental, dos médicos de família, que são pressionados para a prescrição destes fármacos pelos próprios doentes. Provavelmente o acesso é fácil e isto deve ser revisto. Se for a uma farmácia para comprar um ansiolítico, há duas ou três que lhe dizem que só com receita médica, mas há uma quarta farmácia que lhe cede o medicamento.

Outra área em que Portugal se distancia das metas é a das taxas de mortalidade por cancro, que continuam também acima das taxas dos outros países europeus...

Isso prende-se com o diagnóstico precoce. Se olharmos com cuidado para os indicadores, vemos, por exemplo, que na taxa de mortalidade por cancro do colo do útero abaixo dos 65 anos a meta para 2010 era dois por 100 mil habitantes e já a alcançámos. Fico entusiasmada, mas depois dizem: ainda estamos longíssimo do melhor valor da UE, que é 0,9, mas é preciso ver que em 2001 tínhamos 3,5. Melhorar depende do diagnóstico precoce, de rastreios nos casos do cancro de mama, do colo do útero, do cólon e recto. Tem havido rastreios, mas regionais, não de base populacional.
A saúde em Portugal não tem nada a ver com aquilo que era há 15 a 20 anos atrás. Evoluímos de uma maneira fantástica e nalguns indicadores até provámos que evoluímos mais do que outros países.

Disse há dias na Assembleia da República que há doentes que estão tanto tempo à espera de radioterapia que acabam por ter que ser operados de novo...

Sim. O tumor volta a crescer, enquanto estão à espera de iniciar a radioterapia e têm que voltar a ser operados. Isto é inqualificável.

Mas por que é que isto acontece?

Porque há poucos equipamentos, têm que ser alargados. O coordenador das doenças oncológicas fez um inquérito sobre o movimento a todos os serviços de oncologia de forma a poder propor uma rede oncológica. Justificam-se centros de excelência de cirurgias. As cirurgias vão ficar mais concentradas. A radioterapia faz-se em 30 centros, mas são necessários 60. E isto porque aumentou a sobrevivência e há mais indicações para radioterapia mesmo em situações não malignas.