2.7.09

Estado paga dívidas a agressores de mulheres

por Licínio Lima, in Diário de Notícias

O adiantamento de indemnizações que o Estado concede às mulheres vítimas de violência conjugal é, muitas vezes, capturado pelos bancos e transferido para contas do agressor caso existam dívidas. A denúncia é do próprio presidente da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes, responsável pela atribuição daqueles montantes de sobrevivência.

Maria (nome fictício) era todos os dias agredida pelo marido alcoólico e carregado de dívidas. Saiu de casa e requereu o apoio da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes (CPVC) que lhe atribuiu um montante de 400 euros mensais. A verba foi-lhe concedida pelo Estado a título de adiantamento de indemnização que um dia o agressor lhe há-de pagar a mando dos tribunais. Sendo o subsídio recebido por transferência bancária, Maria indicou à comissão um número de conta de uma entidade onde ainda tinha uma outra conta conjunta com o marido. Ao detectar a transferência do dinheiro, a instituição financeira desviou-o imediatamente para essa conta comum onde existiam dívidas que, por acaso, tinham sido da iniciativa do companheiro.

"Isto é, o Estado está a pagar adiantamentos às mulheres vítimas de violência doméstica para pagar dívidas do agressor!" A denuncia é do juiz desembargador Caetano Duarte, presidente da CPVC, em relatório onde apresenta as actividades desta entidade relativas a 2008, e ao qual o DN teve acesso.

"Não é um caso isolado" assegurou ao DN o magistrado que, o ano passado, atribuiu 55 adiantamentos de indemnizações, sendo o de valor mais alto de 400 euros e o mais baixo de cem euros. "Sucede com frequência que a requerente abre conta no mesmo banco em que tinha conta em comum com o companheiro ou marido. Ora, a instituição bancária, ao receber o depósito do adiantamento, transfere, de imediato, aquelas quantias para a conta comum onde existem dívidas", explica Caetano Duarte no relatório.

Contactado telefonicamente, o presidente da CPVC adiantou que as mulheres vítimas de maus tratos, por vezes, nem sequer dispõem do dinheiro necessário para abrir uma conta bancária, e, por outro lado, nem sempre têm que lhes empreste o dinheiro com esse objectivo.

Por isso, são muitas vezes obrigadas a indicar um banco onde têm ainda uma conta em comum com o companheiro que foi seu agressor. Mas, estas situações de indigência imediata têm, ainda, um outro efeito. Algumas das vítimas indicam contas bancárias de pessoas conhecidas que depois recusam entregar-lhes os adiantamentos. "Sim , já tivemos casos desses", confirmou o juiz ao DN. Estas situações ocorrem, sobretudo, em casas-abrigo onde as vítimas são temporariamente acolhidas.

Embora este apoio monetário seja, por vezes, crucial para que as vítimas possam sobreviver, o certo é que, em certos casos, a sua atribuição chega a demorar dois anos. "Há que repensar o problema do pagamento do adiantamento. Nos últimos anos, as dificuldades decorrentes da necessidade de cabimentação orçamental levaram a que as vítimas tivessem de esperar largos meses pelo recebimento dos adiantamentos que lhes haviam sido atribuídos. Neste último ano, somou-se a este atraso a demora na homologação dos pareceres da Comissão", refere o juiz.

Entretanto, tal como o DN anunciou dia 25, o Ministério da Justiça (MJ) já enviou ao Parlamento uma proposta de lei que revê a política de atribuição dos adiantamentos às mulheres vítimas de violência conjugal. Uma das novidades é a criação de um grupo de trabalho, no seio da CPVC, que irá funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana e 365 dias por ano.

Segundo o MJ, a ideia é que, em caso de urgência, as mulheres que saiam de casa de forma inesperada possam ter logo uma porta de apoio aonde bater. Para isso, a Comissão vai passar a ter um fundo próprio, o qual poderá ser dotado com dinheiro oriundo do mecenato. A proposta de lei deverá ser aprovada na Assembleia da República no próximo dia 7.