por Céu Neves, in Diário de Notícias
O Parlamento faz hoje o balanço de um ano de governação socialista. É uma oportunidade para a oposição analisar o reinado de quatro anos de Sócrates, já com os olhos nas eleições legislativas. O DN faz uma radiografia dos principais temas em discussão através do olhar e da vivência de uma família portuguesa, de classe média-alta e em que um dos membros ficou desempregado.
"Lutámos muito para ter o que temos, e conseguimos." A frase, publicada há precisamente seis meses numa reportagem do DN, resumia a forma como a família de Luísa Grilo resistia à crise. E significava que os adultos tinham emprego; que as crianças pensavam tirar um curso superior; que tinham casa própria, além de uma de férias e um apartamento; que possuíam dois carros e que podiam programar jantares, cinemas e uma ou outra viagem. Seis meses depois a frase passou a ser: "Não sei até quando vamos aguentar." O desemprego bateu à porta de casa, entretanto.
Luísa Grilo foi convidada a sair em Janeiro. "A situação já é complicada e ainda não passaram seis meses. Estão a esgotar-se as reservas [indemnização; poupanças], como é que será se não encontrar emprego rapidamente?" É o grande medo de Luísa.
Não que Luísa Grilo, 44 anos, engenheira agro-alimentar, tivesse pensado que estava imune à crise. Mas acreditava na formação e que a fábrica em que trabalhava não precisasse de despedir. Além disso, Luísa e o marido, Luís Pires, 47 anos, subgerente de uma delegação bancária, nunca foram megalómanos e assumiram compromissos sem uma margem confortável para os pagar. E até tinham poupanças, pensadas sobretudo nos estudos superiores dos filhos.
O casal mora na aldeia de Vale de Cavalos, próximo da Chamusca, e só em Santarém, que fica a quase 40 quilómetros de casa, é que existem estabelecimentos de ensino superiores, Aliás, João, o filho mais velho de Luísa e que tem 18 anos, já está a estudar em Santarém, numa escola profissional onde passou para o 12.º ano. Mas ficar na capital de distrito está dependente das preferências do rapaz e de haver vaga no superior, ou seja, pode ter de ir para muito mais longe. A filha mais nova, Maria, de 11 anos, fruto do actual casamento de Luísa, está na Chamusca.
"A vida estava dimensionada para dois ordenados e quando se reduz o orçamento familiar a metade tudo se torna complicado. Prevíamos que o João pudesse tirar um curso superior, público ou privado, em Santarém ou em outra cidade. Era para uma situação dessas que estavam reservadas as poupanças", conta Luísa.
É que o casal sempre optou por ter as crianças em escolas públicas, até porque eram boas as referências da escola da Chamusca. "Vão muito bem preparados para o ensino superior."
E nem as alterações introduzidas pelo Governo e que têm provocado alguma instabilidade no ensino público levam Luísa a mudar de ideias, embora tenha notado uma preocupação excessiva dos professores em relação à sua avaliação: "Senti que descuidaram um pouco a atenção para com os alunos", justifica.
Acompanhar a par e passo o que se passa com os filhos é uma vantagem dos meios pequenos. Regalia de quem vive fora dos grandes centros urbanos, com o valor acrescido da sua aldeia ficar a 80 quilómetros da capital, Lisboa. Isto se se estiver a pensar em deslocações esporádicas. Torna-se impossível para uma situação diária, estudar, por exemplo.
Vale de Cavalos está afastada da confusão, mas suficientemente próximo para se usufruir das auto-estradas de acesso à capital. Isto, apesar de ainda não se ter construído o IC10, uma via que já esteve prevista e que, agora, já ninguém fala.
A família mora num local privilegiado e que vai beneficiar com a construção do novo aeroporto, em Alcochete, que ficará a menos de metade de distância do aeroporto de Lisboa. Isto no futuro porque, para já, o casal teve de cortar as viagens para o estrangeiro. O ano passado fizeram férias nos Açores e projectavam ir à Disneylândia. Acabaram por ficar na Nazaré, casa adquirida há dois anos e que já está paga.
A aldeia está bem servida de transportes. Fica no percurso de várias carreiras do concelho da Chamusca, ao contrário de outras em que só passa uma camioneta de manhã e outra à tarde.
Uma das desvantagens é viver distante de onde tudo parece acontecer e não estamos, apenas, a falar na capital do país. Não há cinema, muito menos espectáculos musicais, de dança ou de teatro. E, para ver um filme, a família tem de ir a Santarém ou a Torres Novas, deslocações que fazem aumentar, e muito, o preço do bilhete. Esta, também, foi uma despesa cortada.
O problema alarga-se à prática desportiva. Não há oferta. O João pratica futebol num clube local e a Maria pratica dança na escola. É o que há.
Os pais de Luísa foram trabalhadores rurais e ela, se quis tirar um curso superior, teve de começar a trabalhar os 16 anos. "Com descontos", sublinha a engenheira, o que significa que trabalhava anteriormente. Ajudava os pais no campo, de onde lhe vem a vocação para a indústria agro-alimentar. Estudava, trabalhava e ia aproveitando as oportunidades, o que passou por dar aulas de biologia e de matemática. Arrependida de deixar o ensino?
"Não, quando se faz as coisas com consciência não há motivos para arrependimento. Se calhar, não me identificava tanto com o ensino, embora o facto de ter dado aulas me tenha ajudado muito. Tinha alguma dificuldade em me expor", conta.
Luísa nasceu e viveu em Coruche e licenciou-se na Escola Agrícola de Santarém. Começou logo por trabalhar numa fábrica transformadora de tomate. Doze anos a aprender, a progredir e a subir na hierarquia, até que a empresa faliu. Luísa tinha 37 anos e arranjou emprego dois meses depois, o mesmo que teve de deixar em Janeiro.
Primeiro dividiram as equipas em quatro turnos (a fábrica labora 24 horas, para evitar o pagamento de horas extraordinárias). Depois, voltaram aos três turnos, só que, desta vez, com o suprimento de funções, embora tivessem garantido que não seriam despedidos.
Luísa quis deixar a empresa onde trabalhava e rescindiu "amigavelmente" o contrato, o que significou uma indemnização pelo mínimo exigido por lei. Quanto? Prefere não dizer. Digamos que é com esse dinheiro que está a aguentar os primeiros meses de desempregada. É que o subsídio de desemprego não é uma garantia de manutenção do nível de vida de quem estava empregado. Não, no caso de alguém que tem um salário bem acima da média.
Enquanto engenheira agro-alimentar, chefe de turno no sector de produção, Luísa tinha um ordenado mensal de dois mil euros por mês, a que se juntavam os prémios anuais. E o limite do subsídio de desemprego são três salários mínimos nacionais, o que equivale a menos de 1200 euros mensais em líquidos.
A verba dá para pagar a prestação da residência e pouco mais. Vivem numa típica casa rural, decorada com rodas de carros de bois, vasos de plantas e onde não falta um forno a lenha. E um pequeno luxo, uma piscina. Até quando? "Até quando as poupanças evitarem que as prestações mensais fiquem para trás." São as poupanças da família e, também, da mãe de Luísa.
A senhora tem uma reforma de 300 euros mensais. Sofre de Alzheimer e só um dos medicamentos custa 50 euros. Estava num centro de dia, onde pagava 120 euros mensais, foi uma das despesas que tiveram de cortar. Passou a viver com a filha, marido e netos.
A mãe de Luísa esgota o dinheiro da reforma com a doença. E não chega. Era a filha que lhe completava o orçamento, o que deixou de fazer devido ao desemprego. E, mais uma vez, recorrem às poupanças. Além disso, tem que ser vista pelo menos duas vezes por ano por um especialista. Especialista que não encontraram no Serviço Nacional de Saúde. "Pedi uma consulta no hospital de Santarém há dois anos e, ainda hoje, estou à espera."
Isto porque não há um médico da especialidade no Centro de Saúde de Vale de Carros, onde têm uma médica de família "excelente". O pior são os horários, consultas com hora e dia marcado com os quais as doenças não se compadecem. Nesses casos, têm de se deslocar ao hospital distrital, em Santarém, que fica a 30 quilómetros, o Serviço de Atendimento Local fechou há dois anos. "O João esteve doente no Natal. Cheguei ao hospital às 11.00 e só saí às 22.00. Como não era um caso urgente, todas as outras pessoas passavam à frente", protesta.
Más experiências comprovativas de algumas das desvantagens de viver fora dos centros urbanos. Um factor que também pode ser prejudicial para quem quer encontrar emprego. A família está disposta a abdicar do privilégio de viver fora da confusão por um emprego para Luísa.
As dificuldades também não fazem com que Luísa, uma mulher de esperança, se demita do que se passa no País. Fez questão de votar nas eleições europeias, ao contrário do que fizeram 63% dos portugueses. "Acho que o devo fazer, quanto mais não seja para mostrar aos mais novos que estão lá em casa que votar é o direito e um direito que custou a muita gente adquirir", justifica. Desta vez, votou na pessoa e não na força política.
Um voto que teve a ver mais com o que se passa no País do que a nível da União Europeia. Um voto que espera tornar mais útil nas próximas legislativas e sobre o qual ainda não tomou uma decisão. Entre as medidas propostas gostaria, por exemplo, que fossem limitados os salários e as reformas em termos de valor mensal máximo. Luísa considera que os casos mais gritantes são as reformas auferidas pelos políticos e militares. Sendo que, neste último caso, a crítica prende-se sobretudo com a idade da reforma. "Conheço muitos militares que se reformaram aos 40 e 50 anos, enquanto poderiam estar a fazer outro trabalhos, nomeadamente a nível comunitário".
A família vive numa uma zona de vivendas com todo o espaço e paisagem para usufruir. Não têm fábricas por perto, nem outra qualquer fonte de poluição. E até a estação de tratamento de resíduos que existe na zona se torna numa vantagem: "As pessoas estão mais sensibilizadas para a reciclagem e preservação do meio ambiente".
A pequena aldeia onde vivem acaba por ser uma vantagem quando não se têm os meios para se manter o estilo de vida a que estavam habituados. A paisagem e o ambiente são facilmente adaptáveis aos períodos de férias, este ano em que foram obrigados a permanecer em Portugal. Mas Luísa fez questão de passar uma semana de férias na Nazaré e não pensar que é mais um número nas listas do desempregado.
Outra das vantagens é não estarem tão sujeitos aos perigos que o casal pensa existirem nas grandes cidades, nomeadamente roubos e outros tipos de crime.
O casal teve os primeiros sinais da actual crise ainda em 2006. E isto porque Luísa trabalhava numa multinacional norte-americana, com fábricas transformadoras de tomate, e começou a perceber que a economia mundial vacilava. Foi quando a empresa prescindiu dos contratados a prazo. "Percebi que o problema poderia chegar aos outros, aos que estavam efectivos", recorda Luísa. E, apesar de já estar há sete anos na empresa, alterou "um pouco" a forma de viver o dia-a-dia. Começou a jogar mais pelo seguro com o orçamento mensal e a fazer mais poupanças.
São essas poupanças que permitem que as finanças da família não tenham entrado em ruptura e que se continuem a pagar as prestações bancárias, as da habitação e de um carro. Os juros baixaram muito pouco tendo em conta que Luísa ficou sem metade do seu rendimento. Não é a primeira vez que está desempregada, mas eram outros tempos. E outra idade. Arranjou colocação em dois meses.
Luísa está desempregada, o que apenas significa que não está a trabalhar por conta de outrem. É que, além de não ter empregada, passou a tomar conta da mãe. E iniciou uma pós-graduação de técnica superior de higiene e segurança, uma formação que vinha adiando, por falta de tempo. É uma área científica em evolução. "A minha área tem evoluído bastante, quer a nível da produção quer a nível do controle. E é está em expansão, o problema é a crise. Os restaurantes fecham, o cafés fecham, as fábricas fecham....e tudo isso tem a ver com o sector alimentar", justifica.
Luísa já enviou mais de 250 currículos. Foi chamada para dez entrevistas e dessas, quatro para agências de recrutamento de quadros médios e superiores. Apenas uma entrevista foi verdadeiramente para um emprego, para técnica administrativa e em substituição de alguém que estava em licença de maternidade n e numa empresa que ficava a 60 quilómetros de casa. Não foi recrutada.
E o que lhe custa é que, apesar de desempregada, tem de cumprir com todas as obrigações como se não estivesse. Mesmo aquelas que não contraiu voluntariamente. Por exemplo, é filha única e decidiu pedir a "habilitação de herdeiros". Teve de pagar mais de 200 euros no notário e outros tantos na conservatória, além do tempo de espera para concluir o processo, não tendo dado conta do Simplex, o sistema anunciado para a desburocratização da administração pública, nomeadamente na área da justiça.
A engenheira está inscrita desde Fevereiro no centro de emprego e nunca a chamaram para entrevistas. Isto quando tem que apresentar todos os meses prova de que anda à procura de emprego, o que significa ter de apresentar quatro a cinco carimbos de empresas que contactou.
Emigrar pode ser uma hipótese que não põe de parte. "Irei para onde encontrar trabalho, já respondi a anúncios para Angola. Não iria com a família, mas apoiam-me se tiver que sair do País. Estamos unidos", explica. E com a força de Luísa, que diz nunca baixar os braços, mesmo que, por vezes, tenha de disfarçar. Sobretudo para os filhos!