Por Teresa de Sousa, in Jornal Público
Portugal e Espanha terão de encontrar uma nova vocação para a parceria ibero-americana, hoje despojada de uma verdadeira agenda política, que faça sentido no mundo actual
Deveriam ser 22. Serão menos - talvez 16 ou 17 - os chefes de Estado e de Governo que se reúnem no Estoril a partir de hoje na XIX edição da Cimeira Ibero-Americana, de novo à procura de uma finalidade. O tema eleito para o encontro - "Inovação e Conhecimento" -, por maior importância que ganhe na agenda económica internacional, também significa que a iniciativa está hoje despojada de uma verdadeira agenda política.
O Presidente Hugo Chávez, que substituiu Fidel Castro no papel de grande "perturbador" dos encontros, não deverá estar presente. Será menos uma dor de cabeça para a diplomacia portuguesa, que temia um inevitável confronto entre o Presidente venezuelano e o seu homólogo da Colômbia, Álvaro Uribe. O Presidente Lula da Silva emprestará o seu prestígio mundial, vindo a Lisboa entre uma cimeira com o Presidente francês em Manaus a pensar em Copenhaga e uma visita à chanceler Angela Merkel a pensar nos grandes negócios. As tensões que marcam a cena política sul-americana animarão os bastidores. Será difícil, no entanto, encontrar uma posição comum. Nada disto será suficiente para fazer do encontro de Cascais algo mais do que "um fórum de diálogo" entre países que partilham uma história, uma cultura e duas línguas comuns. Muito longe de um nova vocação que faça sentido no mundo actual.
Um "talking-shop"
Luís Amado, o chefe da diplomacia portuguesa, fala da importância do relacionamento com o Atlântico Sul como uma nova dimensão da política externa da UE e um interesse particular de Portugal. Alfredo Valladão, académico brasileiro e professor do Instituto de Ciências Políticas de Paris, prefere definir o acontecimento como "uma espécie de talking-shop onde ninguém tem muito a ganhar, mas também não tem nada a perder". Madrid tem um interesse particular - vê a reunião como uma espécie de ensaio geral para a cimeira anual entre a UE e a América Latina e Caraíbas. Vai tentar relançar as negociações entre a UE e o Mercosul para uma área de comércio livre, que marcam passo há 10 anos, em boa medida graças ao proteccionismo agrícola europeu.
Não foi, de início, comum o interesse dos dois países ibéricos nesta iniciativa. Quando a Espanha a lançou com o México, em 1991, ainda se via como "o principal referente da articulação entre a UE e a América Latina", escreve Celestino del Arenal do Real Instituto Elcano de Madrid. Os dois países lusófonos não tiveram outro remédio senão ocupar um lugar.
Hoje, a realidade encarregou-se de aproximar os países ibéricos em torno de uma visão mais próxima, porque mais "europeia", das suas relações com os países da região. Por isso, o maior problema que enfrentam para tentar renovar a parceria ibero-americana é a ausência de uma estratégia europeia para a América Latina. O modelo de relacionamento entre os dois blocos regionais que prevaleceu nos anos 90, assente no fortalecimento das relações comerciais e numa visão da integração latino-americana como espelho da integração europeia, está esgotado. Percebe-se porque. "Mudou o cenário mundial, mudou o cenário europeu e mudou o cenário latino-americano", diz Arenal. O centro de gravidade do mundo deslocou-se para a Ásia-Pacífico. A Europa, que viveu uma longa crise institucional, concentrou-se no alargamento e nas suas fronteiras do Leste e do Sul, foi obrigada a olhar para a Ásia, desinteressou-se pela região. Os países da América Latina, depois da vaga de democratização iniciada nos anos 80, são hoje politicamente mais independentes e mais autónomos nas suas relações externas. O subcontinente lançou-se numa nova vaga de integração regional de contornos ainda mal definidos.
A visão de Lula é diferente da visão antiglobalização e antiamericana de Chávez. O Brasil, com a sua ambição internacional e o seu peso regional, é hoje a peça-chave na recomposição de um novo modelo de relacionamento entre a UE e a América Latina.
"Pela sua natureza, estas cimeiras [ibero-americanas] são sempre um fórum de concertação útil, mas imagino que esta não vá ser muito fácil", diz ao PÚBLICO o antigo chefe da diplomacia brasileira Celso Lafer, que participou em várias. Atribui as dificuldades a "um período de muita tensão que se vive do lado latino-americano - entre a Colômbia e a Venezuela, a Argentina e o Uruguai, o Chile e o Peru, mais a crise nas Honduras". Prevê três cenários possíveis: "Ou um palco de conflito, reflectindo essas tensões; ou uma oportunidade de concertação; ou então, o que é mais provável, um acontecimento um tanto anódino."
Lafer volta a lembrar que esta iniciativa "nunca foi uma ideia que agradasse muito ao Brasil" e que hoje o Brasil está em boas condições de dispensar. "As suas relações com a Espanha são óptimas, com Portugal já eram, e não precisa deste fórum para falar com a Europa."
Qual, então, o destino destes mega-acontecimentos em que se falam apenas duas línguas? "Uma nova agenda política", diz Arenal, que sirva os interesses de ambas as partes num cenário mundial em que a América Latina não está no topo das prioridades nem da UE nem dos EUA.