Por Clara Barata, in Jornal Público
Herói do clima, milionário do carbono, o que descreve melhor Al Gore? Um novo livro do homem que se esperava que fosse Presidente dos EUA mas acabou por se tornar num improvável profeta ambiental chega hoje às livrarias, um mês antes da cimeira do clima de Copenhaga
Dele se esperava que se tornasse Presidente dos Estados Unidos, mas Al Gore não conseguiu sê-lo devido a um processo que lhe deixou más recordações da Florida. No entanto, reinventou-se como uma espécie de profeta ambiental, abençoado com um Óscar e um Nobel (da Paz) ao mesmo tempo. Depois de ter captado a atenção do mundo para a crise climática, volta à carga com um novo livro em que enumera as soluções para salvar o planeta. Sem estar na Casa Branca, tem até a liberdade de dizer que "a desobediência civil tem um papel a desempenhar" na mobilização do planeta contra o aquecimento global, ao mesmo tempo que é acusado de se ter tornado no primeiro "milionário do carbono".
Al Gore é uma espécie de super-repórter, com acesso privilegiado aos melhores cientistas do mundo e aos líderes políticos. E percebe-se que o papel lhe assenta como uma luva: deixou de ser o aborrecido Al, "The Bore", como lhe chamavam os Presidentes George Bush (pai e filho), quando se lançava nas suas diatribes ambientalistas no Senado (e depois como vice-presidente de Bill Clinton). Hoje, como dizia o jornal britânico The Guardian, a propósito das figuras ambientalistas, há que reconhecer: Al Gore tem o estatuto de uma estrela de rock!
A prová-lo, está A Nossa Escolha - Um Plano para Resolver a Crise Climática (Esfera do Caos).
Um cantinho no Gerês
O seu novo livro estará hoje nas livrarias portuguesas com a garantia de que todas as emissões de carbono associadas à produção de pasta de papel, bem como a impressão e acabamento, são compensadas através do sequestro de uma quantidade equivalente de dióxido de carbono numa área de nova floresta no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Esta condição aplica-se em todos os países onde for publicado o mais recente livro de Al Gore, um mês antes da conferência de Copenhaga onde, sob a égide das Nações Unidas, o mundo vai tentar negociar um sucessor para o protocolo de Quioto, para limitar as missões de gases com efeito de estufa.
Se em Uma Verdade Inconveniente (também Esfera do Caos), livro e filme, se esforçava para nos convencer de que o mundo estava a aquecer anormalmente e que as alterações climáticas eram inevitáveis, embora fosse parco em soluções, neste concentra toda a sua energia na busca de soluções. E aí temos uma enxurrada delas, quase um manual, por vezes, em que temas complexos são trabalhados por Gore para os expor numa linguagem simples, onde a ciência - colhida directamente da cabeça das maiores sumidades de cada área, convidadas por ele para uma trintena de seminários temáticos, nos quais ele tirava mesmo notas e fazia perguntas - se mistura por vezes com referências literárias, de T.S. Elliot a Kurt Vonnegut ou até Esopo. Puro estilo Al Gore, num livro cheio de fotografias e gráficos simples.
A linguagem pode ser simples, dando a sensação de que se está a ler uma lição, mas Gore não deixa de guiar o leitor para o interior das polémicas em torno das alterações climáticas e das soluções em discussão, tomando partido.
Os cépticos não lhe merecem mais crédito do que os birthers, as pessoas que acreditam que Barack Obama não pode ser Presidente porque nasceu no Quénia e não no Havai e chegaram até a falsificar uma certidão de nascimento para tentar prová-lo. Cita o falecido senador do estado de Nova Iorque Pat Moynihan (pág. 24): "Toda a gente tem direito à sua opinião, mas não aos seus próprios factos."
Mansão Gore geotermal
Percebe-se, então, que Al Gore é um entusiasta da energia eólica, dos painéis solares e células fotovoltaicas (cita Thomas Edison, o americano inventor da lâmpada: "Apostaria o meu dinheiro no Sol e na energia solar. Que fonte energética!") e, ainda, que está completamente rendido ao potencial da energia geotermal (aproveitando o calor proveniente do interior da Terra), a que recorreu para baixar as suas contas de electricidade - que o fizeram passar um grande embaraço, quando um grupo ambientalista revelou quanto gastava na sua mansão familiar no Tennessee.
Mas agora a casa centenária de 18 divisões foi arranjada com um sistema de tubos e líquido refrigerante, que mergulha até 90 metros debaixo da terra, recolhendo ou o calor ou o fresco das profundezas, ajudando a aquecer ou a arrefecer a casa, e permitindo poupar no ar condicionado (pág. 111).
Outro grande entusiasmo de Al Gore é o biocarvão, que não é mais do que biomassa ou restos vegetais ou até estrume, queimado a altas temperaturas até se transformar numa poeira de carvão fina e porosa - a terra preta da Amazónia, que os habitantes da floresta usavam antes da chegada dos europeus para criar terrenos férteis na selva, onde os nutrientes podem estar mais nas plantas do que no solo.
Gore faz um mea culpa pelo incentivo que deu aos biocombustíveis de primeira geração - essencialmente à base de milho, nos EUA -, que vieram a revelar-se bastante ineficazes em termos energéticos: as emissões de gases com efeito de estufa produzidas no seu fabrico são praticamente iguais às da gasolina. "Foi um desapontamento. No entanto, teve o benefício de aumentar o rendimento dos agricultores e levou ao surgimento de uma infra-estrutura que será valiosa quando as tecnologias de segunda geração estiverem disponíveis, para produzir etanol a partir de plantas não comestíveis", escreve (pág. 117).
A energia nuclear e captura e sequestro de carbono em cavernas no interior da terra merecem o seu cepticismo. "Entre a ideia e a realidade, entre o movimento e o acto, fica a sombra", escreve, citando T.S. Elliot, falando da "sombra do implausível" que marca a ideia de poder recolher o dióxido de carbono (CO2) emitido pelas centrais eléctricas directamente nas chaminés para o enterrar em depósitos subterrâneos. "A exorbitante penalidade energética de captura de CO2 exigiria que a indústria do carvão aumentasse a quantidade de carvão que agora é consumido em 25 a 35 por cento para produzir a mesma quantidade de electricidade que actualmente é gerada" (pág. 136).
Duplo papel
Mas aqui podem entrar os cépticos de Gore, aqueles que não se renderam aos novos encantos do profeta ambiental. Desde que deixou a política, "a fortuna pessoal de Gore subiu de 1,2 milhões de libras (1,3 milhões de euros) para um valor estimado de 60 milhões de libras (67 milhões de euros)", escreveu o jornal britânico The Telegraph. E a 3 de Novembro, no dia em que A Nossa Escolha foi publicado nos EUA, o New York Times (NYT) publicava um artigo sobre o papel "duplo" de Gore, "defensor do ambiente e investidor".
A questão é que se Gore tem ganho visibilidade e prestígio como alguém preocupado com as alterações climáticas, alguém que prefere alertar consciências do que concorrer a cargos públicos - tão poderosos como o de Presidente dos Estados Unidos -, tem também posto o seu dinheiro na liça. E, como que a provar os seus argumentos de que as crises são também oportunidades e que a crise ambiental é o momento ideal para reinventar a economia, tem feito bom dinheiro.
Como parceiro da empresa de capital de risco Kleiner Perkins Calufield & Byers, uma das mais prestigiadas de Silicon Valley, tem financiado projectos de novas tecnologias limpas. Muitas das empresas que apoia têm conseguido bons contratos - uma delas foi a Silver Spring Networks, que produz hardware e software para redes eléctricas inteligentes, uma aposta da Administração Obama. Vários clientes desta empresa obtiveram contratos, pelo que a aposta na Silver Spring deve trazer lucros a Gore durante vários anos, sublinhava o jornal de Nova Iorque.
Daí que o que corre entre os críticos - e agora inimigos, que deixaram de desconsiderá-lo com um chato pomposo para passar a encará-lo como um mal a combater, dizia o Guardian - é que Gore se está a transformar no primeiro milionário do carbono.
Acusam-no de estar a tirar benefícios pessoais das políticas energéticas e climáticas que pressiona o Congresso norte-americano a adoptar. Foi nesse sentido que foi interrogado por Marsha Blackburn, membro da Câmara dos Representantes pelo Tennessee, o estado de Al Gore. "Se acreditam que o motivo pelo qual tenho trabalhado nos últimos 30 anos é a ganância, não me conhecem. Há algo de errado em fazer negócios? Estou orgulhoso do que faço", disse Al Gore em Abril, numa sessão da Câmara dos Representantes sobre investimentos em energias verdes.
Mas a desconfiança vinda da direita americana não pára. No dia 12 de Novembro, o editorialista do Wall Street Journal Holman Jenkins Jr., que não esconde o cepticismo face ao aquecimento global, escrevia que as previsões de Gore "de uma catástrofe climática não diminuíram, mas, de cada vez que abre a boca, os custos de enfrentar a emergência tornam-se cada vez mais fáceis de engolir. Deixaram de ser custos; como ele diz no seu novo livro, são "lucros"".
Al Gore disse ao NYT que canaliza lucros que tem com este tipo de investimentos para a organização não lucrativa que fundou, a Aliança para a Protecção Ambiental, e o Projecto Clima, que forma pessoas interessadas em fazer apresentações como aquela que serviu de base para o filme e o livro Uma Verdade Inconveniente.
Mas Gore tem outros investimentos, como a Apple e o Google, por exemplo, além de lucros dos livros e do filme, e de cobrar mais de 100 mil dólares por cada palestra (embora muitas vezes fale sem cobrar nada). No entanto, uma porta-voz de Gore escusou-se a avançar ao jornal qual seria o valor da fortuna do ex-vice-presidente.
A mensagem de Vonnegut
Certo é que Al Gore atingiu uma posição que poucos políticos ou figuras públicas se podem permitir. Quantos políticos se atreveriam a aproximar-se tanto como ele fez, em declarações ao Guardian, do convite à revolta pública? "A desobediência civil tem uma história honorável, e quando a urgência e a clareza moral cruzam um certo limite, penso que é muito compreensível. E espero que [a desobediência civil] aumente, não tenho dúvidas."
Não há dúvida: a ele não o apanharão a participar na parábola com que abre o livro, citando algo que o norte-americano Kurt Vonnegut escreveu há cerca de 20 anos. Se daqui a uns 100 anos aparecessem aqui na Terra extraterrestres em discos voadores, ou anjos, ou lá o que fosse, e descobrissem que nos tínhamos extinguido como os dinossauros, o que poderia ser uma boa mensagem para deixarmos escrita para eles, numa parede do Grand Canyon? A sua sugestão era: "Provavelmente podíamos ter-nos salvo, mas fomos demasiado preguiçosos para nos empenharmos... E demasiado mesquinhos."