Por Catarina Gomes, in Jornal Público
Elizabete (nome fictício) demora pelo menos duas horas de transportes públicos a ir visitar a mãe de 74 anos ao único lar que a aceitou. Por ser seropositiva, não foi possível encontrar uma unidade no concelho onde vive, Cascais, diz a filha, por mais que se tentasse.
Seropositivos são sempre preteridos quando existem vagas
Só consegue ir visitá-la "duas vezes por mês" e "ela sente-se mais só, lá do outro lado do rio", na Charneca da Caparica (Almada). Com o avolumar de problemas de saúde - cataratas, dificuldade em andar -, esta auxiliar de acção educativa conta que se tornou impossível mantê-la em casa, um terceiro andar sem elevador.
As associações que trabalham na área do VIH/Sida sentem cada vez mais o problema que dizem ser de discriminação de utentes seropositivos na entrada em lares. O problema tende a agravar-se, já que, com a melhoria dos tratamentos, aumentou a esperança de vida de doentes, nota Sara Carvalho, assistente social da associação Abraço, em Lisboa. "Chegam-nos cada vez mais dependentes".
Os números oficiais não nos permitem saber qual é a distribuição etária da patologia. Apenas se sabe que o grosso das notificações acontece quando os doentes têm menos de 45 anos, diz o coordenador nacional para a Infecção VIH/Sida, Henrique Barros. Amanhã é Dia Mundial da Sida.
Situação típica: "Ligo para um lar, digo que tenho um utente para colocar, aceitam, acerto preços. Quando digo que de onde estou a ligar a vaga deixa de existir, a pessoa que era para sair afinal não saiu", afirma Sara Carvalho, notando que só contactam unidades com alvará da segurança social. Ao longo dos últimos três anos viram cerca de 20 utentes ser recusados. A solução de recurso acaba por ser dar apoio domiciliário "a utentes que estão em casa mas não deviam estar". Em 40, têm cinco a seis nesta situação, "incluindo uma utente em estado vegetativo há três anos", nota Sara Carvalho.
Chama-se "centro de alojamento temporário" porque era suposto que as pessoas ali estivessem de passagem, mas a verdade é que "muitas vezes as pessoas vão ficando, às vezes até morrerem", constata Cidália Rodrigues, coordenadora do Movimento de Apoio à Problemática da Sida, no Algarve. As camas são só nove, não são articuladas, sem vigilância nocturna. "Nós damos uma resposta não qualificada", notando que, "em dez anos, não tenho um único caso de um seropositivo inserido num lar, nem pago nem comparticipado". Normalmente, dizem-lhes que fica "em lista de espera".
A falta de equipamentos é um problema nacional, ressalva Maria Eugénia Saraiva, presidente da Liga Portuguesa Contra a Sida, em Lisboa. "Mas se há duas pessoas em lista de espera, uma com VIH e outra sem, optam pela não seropositiva. Os lares que aceitam são uma minoria. As negas são diárias".
Por também sentir cada vez mais esta dificuldade, a Associação SER+, em Cascais, fez há cerca de um ano um exercício: uma técnica vestiu a personagem de uma filha que estava à procura de um lar que recebesse o pai, idoso e seropositivo, conta a coordenadora, Andreia Pinto Ferreira. Em 14 lares contactados por telefone na região, oito disseram que não. Justificações? "Os utentes não estão em quartos sozinhos e há o perigo de a pessoa se cortar ou magoar", "já tiveram um utente infectado e surgiram problemas com as funcionárias, que tinham muito medo", "no regulamento está explícito que não podem ter ninguém com doenças infecto-contagiosas". Três disseram que "não têm condições para acolher este tipo de utentes".
Não há respostas por escrito
Mas todas as respostas são dadas pelo telefone. "Pedimos que nos mandem documentos. Se alguém pusesse isso por escrito, os lares fechavam. Já ninguém cai nessa", constata Paula Policarpo, vice-presidente da Abraço e jurista, que diz que mesmo que gravassem as conversas estas não serviriam "de meio de prova", notando que têm dado conta da situação à Coordenação Nacional para a Infecção VIH/Sida.
Há quatro anos que Henrique Barros ocupa o cargo de coordenador nacional e afirma que só teve conhecimento oficial de uma situação, comunicada por um hospital há dois anos, num lar do Norte, onde uma doente foi abandonada. A coordenação interveio, a doente acabou por regressar ao lar e foi posto um processo na Ordem dos Médicos contra o clínico que recusou a integração. "Não fomos informados de mais nada. Denunciem casos! Não tenho provas. Perante casos reais, averiguamos."
Edmundo Martinho, presidente do Instituto de Segurança Social, queixa-se do mesmo. Diz que receberam "dois a três casos que são antigos e foram resolvidos. Não temos mais nenhum caso reportado, o que não quer dizer que não existam. É importante que os sinalizem".
Inês Carreira, assistente social do Hospital de Egas Moniz, em Lisboa, nota que "há dificuldades na integração", mais ao nível de lares particulares e casas de repouso, mas que mesmo aí pensa que "a rejeição não é tão grande".
Andreia Alcântara, assistente social do serviço de doenças infecciosas do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, diz que as recusas ocorrem sobretudo em lares privados com alvará. "[Na cidade] de Lisboa, é muito difícil encontrar lares que aceitem pessoas infectadas". Acaba por aceitar um grupo muito restrito de unidades fora da cidade. A assistente social conta que não são recusas explícitas, "encontram formas de dificultar a integração: dizem que não reúnem condições para ter um doente seropositivo, que não têm vagas, inflacionam preços".
No caso das instituições particulares de solidariedade social, "que não podem negar a integração, referem a inexistência de vagas, dizem que têm listas de espera". "Ao medo de prestar cuidados" junta-se "o medo da reacção dos outros doentes e dos seus familiares, de que o lar fique estigmatizado como unidade que recebe seropositivos". O presidente adjunto da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, Eugénio da Cruz Fonseca, afirma não conhecer situações de discriminação, mas, mesmo que isso acontecesse, não podiam agir. "As instituições são autónomas, não as podemos levar a mudar de comportamentos."
O coordenador nacional para a Infecção VIH/Sida, Henrique Barros, diz que as respostas sociais são cada vez mais, com a rede de cuidados continuados. A assistente social Andreia Alcântara concorda que na rede não há problemas de recusa mas trata-se "de soluções temporárias" e "demoram muito tempo. Às vezes os doentes ficam à espera quatro, cinco meses, o que é péssimo, porque correm o risco de apanhar infecção sobre infecção".