2.9.10

Na Quinta da Fonte já não há brancos nem pretos, há apenas seres humanos

Por Carlos Filipe, in Jornal Público

Miúdas ciganas têm jeito para a esgrima, as avós fazem bonecos com motivos étnicos, os africanos despertam para a escrita criativa. O padre diz que deixou de haver medo


Se não se invoca qualquer milagre então é porque há ali obra de homens e mulheres que trabalham com espírito de missão, numa comunidade mais colaborante. E ali não é um sítio qualquer, é a Quinta da Fonte, freguesia da Apelação, concelho de Loures, paredes meias com Lisboa. Um bairro tristemente celebrizado por cenas de violência, o último dos quais um tiroteio entre ciganos e africanos no último fim-de-semana. Há dois anos, houve pior. Agora, diz quem ali mora, foi apenas um caso pontual.

O último episódio, do qual ninguém quer falar, é tido já como atípico, um caso isolado, talvez fruto do calor, que treslouca. Aquela parte da freguesia está diferente, para melhor. Por contrato, por obra do homem e graças à prevenção.

Mas do divino também por ali se fala. É o que também nos dirá o padre João Bento, que há quatro anos ali exerce o sacerdócio. João Bento foi um dos 40 representantes que assinaram o chamado Contrato Local de Segurança (CLS) de Loures, que abrange aquela freguesia e as de Camarate e Sacavém. "É uma iniciativa feliz, apela às forças vivas da comunidade que tomou consciência que a solução não residia na mobilização das forças policiais, mas da comunidade. E o bairro deixou de ser algo que meta medo", testemunha o padre.

Pacificação à civil

Aquela parte da freguesia realojou quem teve de ceder lugar à Expo"98 e a tudo o que se lhe seguiria. E foi tudo ao molho. "Pode não ter sido a melhor forma", admite uma vereadora de Loures, Sónia Paixão, que gere o CLS. Mas ressalva: "Em alguma altura, a integração social teria de ser feita, e para isso teremos de contar com a vontade dos próprios para o fazer. Os resultados a nível social não mudam a curto prazo, o que se nota é que já existe convivência sã na multiculturalidade. Os dados da PSP atestam que a criminalidade e o sentimento de insegurança baixaram. E o que aconteceu agora terá sido um caso isolado."

No domingo, falou-se de ciganos contra africanos. Manuel Mendes, da direcção da Associação de Moradores Unidos da Apelação (AMUA), relativiza: "Foi um acto isolado, e creio que não compromete o esforço que está a ser feito pela pacificação", referindo-se ao CLS, "que tem ajudado a normalizar a actividade da freguesia, apaziguando e ouvindo a comunidade no seu todo, que tem de colaborar." Mesmo que a presença da polícia conforte ou seja "essencial, com uma forte componente psicológica". Graças ao CLS, a freguesia passou a contar com seis agentes em permanência, que a patrulham, dia e noite.

O padre Bento acredita porém numa pacificação à civil, mas também diz que a intervenção divina tem ajudado: "As pessoas procuram aqui algum refúgio espiritual, e aí há sempre o padre que lhes diz que a vida não pára, havendo que reagir."

O CLS está nas mãos de todos e nas da chefe das operações, a subcomissária Luísa Monteiro, que interrompeu funções na PSP e está agora ao serviço da Câmara de Loures e do CLS. Com 22 anos de operacionalidade e comandos de esquadra, diz-se habituada a estes ambientes. Vai falando com a sua assistente no centro, para preparar as próximas actividades desportivas. Râguebi, judo e esgrima. E uma carita mostra-se pela janela gradeada daquele rés-do-chão da "casa do contrato", uma autoridade na zona, mas sem farda.

A importância de um hobby

"São as minhas ciganitas, têm jeito [para a esgrima]", diz Luísa Monteiro, com alguma convicção. "Sim, esgrima, e por que não? Nós aqui somos diferentes!", acrescenta a "senhora comissária", como lhe chamam, da janela do primeiro andar do prédio em frente. "À tarde vou aí falar consigo", responde.

"Recebemos por dia umas 50 pessoas, e nas casas [do contrato] das outras freguesias, em Camarate e Sacavém [com quem reparte o dia de trabalho]. A polícia é sempre precisa, trabalhamos com ela, mas o nosso objectivo é a prevenção. Vamos trabalhando a comunidade, que é feita de gente de bem, que não é branca nem preta, mas de seres humanos, que querem viver em paz. Aqui não há gangs. Tem-se dito por aí muita patetice", assegura.

Lamenta a violência doméstica que ali ocorre com frequência, mas rejubila com o aumento das denúncias. E diz ajudar na resolução de problemas, a fazer uma petição ao tribunal, para o pagamento fraccionado de coimas, que afiança estarem a ser pagas.

Mais ocupação de tempos livres é o que parece faltar à comunidade. Manuel Mendes lança uma dedução curiosa, válida para a Quinta da Fonte como para qualquer local: "A temperatura elevada cria muita agitação e tensão na comunidade. O pessoal não consegue dormir e fica muito tempo na rua. Uns estão desempregados e os jovens não têm um plano de ocupação dos tempos livres. Ora, às vezes, isto é um catalisador para algumas situações de conflito."