14.2.23

Gustavo Carona: “É crucial compreender o que é o profissionalismo humanitário”

Inês Duarte de Freitas, in Público

O médico intensivista diz que é preciso direccionar todos os esforços de auxílio para as associações humanitárias. “É um erro tremendo” desconfiar do trabalho dos profissionais, assegura.

Os últimos dados dão conta que pelo menos 21 mil pessoas terão morrido na Turquia e na Síria, na sequência dos sismos corridos no início desta semana. Em campo estão 120 mil equipas de socorro, com mais de 5500 veículos e ajuda de 95 países. É para essas equipas que os portugueses devem dirigir o seu auxílio, incentiva o médico intensivista Gustavo Carona, que se dedica a missões humanitárias desde 2009.

Esta semana, o também cronista do PÚBLICO, escrevia que “querer ajudar é muito diferente de saber ajudar”. Consciente de que os portugueses têm empatia e compaixão ante estas catástrofes, mas não sabem onde aplicar o seu auxílio, decidiu iniciar uma angariação de fundos, através da rede social Instagram, onde ultrapassa os 95 mil seguidores. Através das redes sociais, avança, já reuniu mais de 12 mil euros para os Médicos sem Fronteiras.

Qual é a sua ligação aos Médicos sem Fronteiras?
Sou apenas um médico que já teve o orgulho de os representar diversas vezes, em alguns dos locais com maiores necessidades humanitárias do mundo, quase sempre em cenários de guerra, assim como já representei a Cruz Vermelha Internacional e os Médicos do Mundo. E há 14 anos que faço muitas reflexões vindas da minha experiência sobre como tornar o mundo melhor.

Por que motivo está a organizar uma angariação de fundos?
Estamos numa fase ultra-aguda da crise, é tempo para os profissionais humanitários, que têm décadas de experiência, fazerem o que mais ninguém sabe fazer. Apenas tento usar as minhas palavras e a visibilidade que me foi dada para tentar explicar às pessoas “como se faz”. Senti uma tristeza e uma revolta enorme, claro quer pela Turquia, mas sobretudo pela Síria. Não só porque já lá estive, em Idlib (controlada pela oposição), mas porque é absolutamente desumano, depois de 12 anos a serem bombardeados, sofrerem agora esta catástrofe. Isto, juntamente com a minha impotência de não poder fazer mais do que doar e apelar aos donativos, fez-me muito querer dar a voz e cara pela ajuda humanitária, para todas as organizações que estão no terreno.

Qual é a melhor maneira de ajudar? Através de bens ou dinheiro?
As pessoas, por ignorância, acham que a resposta é ir a correr ao supermercado ou à farmácia. Verificámos o mesmo nos primeiros dias de guerra na Ucrânia, mas isso é uma forma totalmente ineficaz de ajudar, porque os custos do transporte, a falta de organização e conhecimento de quem o está a fazer tornam o resultado quase nulo. Percebo que, emocionalmente, uma caixa de paracetamol, uma lata de atum ou um cobertor façam as pessoas sentir que estão a ajudar, mas apelo a que transformem isso em donativos — é infinitamente mais útil, ou seja, salva muito mais vidas.



Os portugueses são desconfiados quando ajudam? Como garantimos que a nossa ajuda está a ser usada para os fins correctos?
A maioria das pessoas vive no receio de que as organizações humanitárias não sejam sérias, o que é um erro tremendo. Erros e falhas toda a gente comete. É também por já terem falhado que têm anos e décadas de reflexões maturadas de “como se faz”. Por outro lado, é preciso compreender que o voluntariado é extremamente bonito, mas só serve para uma ajuda de proximidade. É crucial compreender o que é o profissionalismo humanitário. Faz com que quando doamos dez euros apenas cerca de oito cheguem ao terreno. Mas, se comprarmos dez euros em comida, além de o transporte ser mais caro, há uma grande probabilidade de esses bens não serem entregues ou mal geridos. Ajudar é como pagar impostos. Fazemo-lo, porque compreendemos que há um bem comum, para escolas, hospitais, polícia, bombeiros, tribunais, etc. Fazemo-lo mesmo sabendo que o sistema tem falhas e está sempre em melhoria. Mas percebemos que, sem eles, o sistema seria o caos.

Sem qualquer comparação possível, a melhor — se não a única — forma de ajudar é dando a quem faz vida disto. Da mesma forma que, quando temos um incêndio, não corremos a atirar copos de água, mas chamamos os bombeiros.

Por exemplo, a embaixada da Turquia [em Lisboa] diz que a roupa doada tem de ser nova. Esse tipo de exigências ajuda à desconfiança?
Não comento o pedido da embaixada da Turquia, mas qualquer donativo de bens em qualquer circunstância tem de estar novo ou quase, senão a ineficiência e o trabalho que dá a selecção dos itens, custa mais tempo e dinheiro. Espero que este triste acontecimento sirva para as pessoas aprenderem “como se faz” e que o façam continuamente. Por exemplo, há três milhões de crianças que morrem à fome por ano. Poucos são os portugueses que o sabem, e menos ainda, os que tentam salvar uma destas vidas.