28.2.23

Faltam pedopsiquiatras, camas de internamento e há esperas longas para consultas no SNS

Ana Maia, in Público online

Coordenação das Políticas de Saúde Mental diz que está a ser feito investimento no ambulatório e até ao final deste ano ou início do próximo irão abrir mais dez camas de internamento.

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Faltam pedopsiquiatras e outros técnicos no SNS, há hospitais em que o tempo de espera para uma consulta ascende a 200 dias e são precisas mais camas de internamento. “Existe falta generalizada de tudo”, diz o presidente do colégio da especialidade da Ordem dos Médicos. A Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental (CNPSM) explica que está a ser feito investimento no ambulatório, para reforçar a resposta de proximidade, e até ao final de este ano ou início do próximo irão abrir mais dez camas de internamento para adolescentes.

No país existem quatro serviços de internamento – nos centros hospitalares e universitários de Coimbra e do Porto (CHUC e CHUP, respectivamente), um no Hospital Dona Estefânia, que pertence ao Centro Hospitalar Lisboa Central (CHLC) e uma unidade partilhada entre este último e o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL), direccionado para adolescentes e jovens adultos. Nem sempre a resposta é fácil, com diferenças regionais.

"Os serviços de pedopsiquiatria no SNS são insuficientes. Isto resulta de anos de não-investimento”Paulo Santos, presidente do colégio de pedopsiquiatria da Ordem dos Médicos

No D. Estefânia, que serve de referência às regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, o internamento tem 16 camas e a lotação está completa. “A lotação a 100% é a habitual, sendo excepcional haver vagas que perdurem mais do que 24 horas. Temos quase permanentemente uma lista de espera para internamentos programados e também são frequentes situações em espera no SO [Serviço de Observação] Pediátrico e na Unidade de Adolescentes (Pediatria)”, explica o CHLC.

A duração média dos internamentos “está entre os 30 e os 40 dias”. De 1 de Janeiro a 26 de Fevereiro foram tratados 33 doentes. Em 2022, foram tratados 174 doentes - a maioria tinha 14 anos. A taxa de ocupação foi de 96%, com uma demora média de 36 dias de internamento. O número de profissionais no internamento “está de acordo com o necessário”, no entanto, “seria uma mais-valia a presença de técnicos de outras áreas, nomeadamente, de terapia ocupacional e musicoterapia”.

Este serviço articula-se com a unidade partilhada que funciona no CHPL desde 2018, onde a resposta está direccionada aos jovens entre os 15 e os 25 anos. O internamento no CHPL tem 20 camas usadas conforme as necessidades – “ou seja, não há um número fixo de camas para psiquiatria pediátrica ou de adultos” – e a taxa de ocupação em Janeiro foi de 81%. No ano passado foi de 84%. Mas já houve taxas de 100%. O tempo médio de internamento ao longo dos cinco anos “variou entre os 13,7 e os 20 dias” e a média de idades dos utentes internados tem sido de 21 anos.

Sem contar com repetições, em 2022 foram internados 262 jovens e entre 1 de Janeiro e 24 de Fevereiro deste ano 67. Afectos a esta unidade estão “2 pedopsiquiatras, 3 psiquiatras, 3 psicólogos, uma assistente social, uma educadora e uma terapeuta ocupacional, todos em tempo parcial por terem também outras actividades”, entre outros. O hospital diz que “seria vantajoso contar com mais horas” de alguns profissionais para as actividades que têm e as que estão previstas desenvolver.

No final da semana passada, a taxa de ocupação do internamento – um total 8 camas - no CHUC estava nos 87,5%, mas o serviço tem registado “com alguma frequência situações de lotação a 100%”. Adianta que “após a pandemia houve um aumento da quantidade e gravidade dos quadros pedopsiquiátricos com tradução no aumento da taxa de lotação do internamento”. Em 2022, a duração média dos internamentos foi de 22,43 dias e estiveram internados 81 adolescentes (média de 14,9 anos). Desde Janeiro até ao final da semana passada, já estiveram/estão internados 11 adolescentes (média de 15,5 anos). O internamento conta com “4 pedopsiquiatras a tempo parcial e 12 enfermeiros”.

Já no CHUP, “só ocasionalmente” a taxa de lotação atinge os 100%. Nos primeiros 53 dias deste ano foi de 78%. A demora média de internamento “é muito variável e tem picos”, refere o hospital, adiantando que não considera ser necessário aumentar o número de camas, que são dez -, “assim como não é considerado que internar numa grande parte dos casos seja a melhor opção para os adolescentes”. “O trabalho é realizado no sentido de ter opções diferenciadas que não obriguem a internar”, diz. Em 2022 foram tratados no internamento 98 doentes.

Nas consultas, o tempo máximo de resposta garantido na prioridade normal não deve superar os 120 dias, mas em alguns hospitais a média de espera – dados de Outubro a Dezembro de 2022 disponíveis no Portal do SNS - é de 200 dias ou mais. Em Santarém era de 275 dias, em Leiria 200, em Aveiro 254, em Loures 225 e em Braga 357 dias. Quanto ao número de utentes a aguardar por consulta a 31 de Dezembro de 2022, em alguns casos também era extenso. Em Braga eram 419, Loures eram 117, Aveiro 65, Leiria 79 e em Santarém eram 78 utentes.
132 pedopsiquiatras no SNS

“Os serviços de pedopsiquiatria no SNS são insuficientes. Isto resulta de anos de não-investimento” na saúde mental, diz Paulo Santos, presidente do colégio de pedopsiquiatria da Ordem dos Médicos, referindo que “existe falta generalizada de tudo”. Se a situação já não era fácil, “após a pandemia entrou em estado caótico, com mais pedidos de consultas, urgências e necessidade de internamentos”, refere o responsável, que diz que a situação na pedopsiquiatria “é trágica”.

A começar pela falta de especialistas no quadro. “O número desejado para cobrir o país seria perto de 200”, refere Paulo Santos. “O irónico é que existem bastantes pedopsiquiatras a serem formados e se todos ficassem no SNS, as coisas não estariam tão más”, diz. Segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), em Janeiro deste ano, o SNS tinha 132 pedopsiquiatras (em Agosto do ano passado eram 136) – número não inclui internos, nem parcerias público-privadas. A CNPSM contabilizou em 2022, por via de um inquérito feito aos serviços, 66 internos da especialidade em formação.

Paulo Santos aponta como razões que levam os profissionais a “sair para o privado” a falta de “condições de trabalho, de equipas, de estruturas”. “As equipas são multidisciplinares e o SNS tem um grande défice de outros técnicos que deviam existir. Queremos muito ter internos, mas depois não temos locais para estágios”, afirma, convicto que será possível aumentar as vagas formativas.

Questionado sobre o internamento, diz que o existente “não cobre as necessidades” e por vezes é preciso internar “e não temos sítio”. “As camas de internamento são insuficientes”, mesmo que os serviços fossem capazes de uma melhor resposta de proximidade, com mais consultas externas e consultas de crise que conduzissem às urgências apenas os casos que tivessem de ser vistos no imediato. São situações de perturbação do comportamento alimentar, de ideação suicida normalmente ligadas a perturbações depressivas e perturbações do foro psicótico que levam à necessidade de internamento.

Quanto aos longos tempos de espera para consultas, “teoricamente é inadmissível em termos de saúde”. “O problema é que não se consegue dar resposta pela falta de equipas e estruturas”. A esperança para melhorar toda a situação é o Plano de Recuperação e Resiliência, com mais de 80 milhões de euros previstos, que prevê, por exemplo, a implementação de equipas comunitárias. Estas equipas “são fundamentais para melhorar o atendimento e para ser mais atempado”, diz.

“A pedopsiquiatra é essencialmente uma especialidade de ambulatório e idealmente o internamento é o último recurso”, diz Ana Matos Pires, membro da CNPSM. Reconhecendo que as camas “são poucas”, é a falta de pedopsiquiatras no SNS que “preocupa mais”. "Havendo mais resposta de ambulatório, o número de internamentos seria menor", afirma. No Algarve existe apenas um médico a tempo parcial em toda a região e no Alentejo são apenas dois. Em breve espera que este número aumente com mais um médico em Évora e outro em Portalegre.

É “instituindo um projecto terapêutico de continuidade e proximidade, que se conseguem atingir melhorias clínicas sustentadas, evitando quadros clínicos mais graves”, reforça Cristina Marques, também da CNPSM. Motivo pelo qual o investimento “está a ser feito na melhoria da resposta ao nível do ambulatório, aumentando os recursos humanos disponíveis, organizados em equipas comunitárias que têm o objectivo de melhorar a acessibilidade e diminuir o tempo de resposta para primeira consulta”.

“Desta forma, será possível diminuir o recurso ao serviço de urgência e a necessidade de internamentos mais prolongados”, afirma Cristina Marques, referindo que "já antes da pandemia a lotação dos internamentos atingia por vezes 100%". "Com o acréscimo de pedidos de consulta após a pandemia é provável que tenha aumentado a pressão sobre os serviços de internamento."

A Rede de Referenciação hospitalar, em vigor desde 2018, aponta a necessidade de 72 camas de internamento e recomenda a abertura de mais camas para adolescentes. A recomendação do número de camas mantém-se, “se incluirmos as necessidades para doentes de evolução prolongada e “está prevista uma unidade de internamento para adolescentes no CHULN [Centro Hospitalar e Universitário Lisboa Norte] com aproximadamente 10 camas, com abertura prevista para final de 2023/ início de 2024”, diz.

Para se atribuir idoneidade formativa, um hospital tem de ter um serviço de pedopsiquiatria e no mínimo três especialistas a tempo inteiro, explica Paulo Santos, que refere que está a ser feita uma reavaliação dos critérios de idoneidade e do programa de formação. Segundo a CNPSM há nove serviços com idoneidade formativa, dos quais três tem idoneidade total. Mais oito estão em fase de avaliação ou a ultimar o pedido de idoneidade para 2024.

Cristina Marques explica que a CNPSM está a ultimar um pedido formal ao colégio da especialidade “para que, dada a escassez de recursos humanos na especialidade, se flexibilizem os critérios de idoneidade formativa dos serviços, durante um período transitório e em situações de excepção, desde que não se coloque em causa a qualidade da formação dos médicos internos”. Há também medidas que estão a ser avaliadas pela Direcção Executiva do SNS para tentar resolver a carência destes médicos.