17.2.23

Imobiliário dispara mesmo em concelhos pobres e a perder população

Textos Elisabete Miranda e Raquel Albuquerque, infografias Sofia Miguel Rosa, in Expresso

Pequenos concelhos, a perder habitantes e com baixo nível de rendimento, também viram a receita imobiliária disparar. Autarcas admitem construir casas

Encontrar uma casa compatível com o nível de rendimento transformou-se num quebra-cabeças, mas a dificuldade está longe de ser um problema urbano. Nos últimos 10 anos as receitas com o Imposto Municipal sobre Transmissões (IMT) — um barómetro sobre a evolução dos negócios imobiliários — mais que triplicaram a nível nacional, mas há pequenos concelhos, com baixos níveis de rendimento e perda de população, a registar aumentos estratosféricos, bem acima da média nacional. Vistos gold, investimento estrangeiro, turismo e segundas habitações são algumas explicações para um fenómeno que, embora engorde os cofres das autarquias, arrisca a descaracterizar as pequenas terras, agravar a estratificação social e corroer a confiança nas instituições, alertam os especialistas.

Numa década, 60% dos municípios do continente mais do que duplicaram as suas receitas de IMT e 30% viram o seu valor triplicar, ou mais. Lisboa é, naturalmente, a autarquia que mais dinheiro encaixa com as transações imobiliárias e também viu a receita crescer substan­cialmente, mas está longe de ser a que deu o maior salto. Analisando a evolução dos dados concelhios, facultados ao Expresso por Maria José Fernandes, presidente do Instituto Politécnico do Cávado e do Ave e coordenadora do “Anuário Financeiro dos Municípios”, conclui-se que grandes centros urbanos como Lisboa, Porto, Sintra ou Gaia viram as receitas quadruplicar, quintuplicar ou até sextuplicar entre 2012 e 2021 (ver gráficos).

Mas há pequenos e médios municípios com saltos semelhantes ou até maiores, e com uma característica adicional: são territórios de baixa densidade, alguns do interior, e com níveis de rendimento abaixo da média nacional. Por exemplo, Aljezur, Vila do Bispo e Marvão são concelhos ‘pobres’ (o poder de compra é 67% da média) onde a receita de imposto disparou. Mas não estão sós. Almeirim, Mourão, Alcácer do Sal e Grândola, por exemplo, também estão na lista, e até perderam população. Como se explica o dinamismo do mercado imobiliário também nestes territórios e que consequências tem para as comunidades locais?

João Ferrão, especialista em geografia económica e social, antigo secretário de Estado do Ordenamento do Território, elenca várias causas possíveis. A recuperação pós-crise financeira, a suburbanização e a compra de imóveis por estrangeiros “em resultado da instabilidade no Norte de África, dos vistos gold, das isenções fiscais ou da crise no Brasil”. A isso junta-se a expansão das zonas turísticas, a transformação de habitação em Alojamento Local, a fuga dos grandes centros urbanos “acelerada pela pandemia”, além da “crescente financeirização” do mercado imobiliário. E, falando com os agentes locais, as explicações vão-se encaixando, con­soante os casos.

VISTOS GOLD, TURISMO, ESPECULAÇÃO, INVESTIMENTO

Almeirim, no distrito de Santarém, campeão do aumento da receita (ver gráficos), acrescenta outra explicação. “Temos vindo a criar condições para atrair empresas para o concelho”, indica o presidente da autarquia, Pedro Miguel Ribeiro. Negócios como a plataforma logística da Mercadona e a Fresh-52 explicarão uma parte do salto e a outra, acrescenta o autarca, resulta da subida do preço das casas. Apesar de o concelho ter perdido população, “as novas empresas atraem trabalhadores”.

Outro município a perder população e a ver os preços dispararem é Alcácer do Sal. Fonte oficial da autarquia desvaloriza o salto da receita em IMT (mais de 800%) e diz que “é sobretudo oriunda de transações em prédios rústicos”, uma vez que “a câmara prescinde há alguns anos de IMT para incentivar a reabilitação urbana”. Duarte Silva, consultor da RE/MAX Alive Riverside, pormenoriza que “Alcácer está a 50 minutos de Lisboa, o que fez a procura de segundas habitações disparar, nomeadamente durante a pandemia”. Além disso, “os vistos gold deram um salto”. “São americanos, chineses, mas também iranianos, indianos e paquistaneses”, alguns dos quais a aproveitar as isenções fiscais das áreas de reabilitação urbana.

Ali ao lado, Grândola é outro caso que salta à vista nas estatísticas. A câmara não respondeu ao Expresso, mas Pedro Ruas, deputado municipal do PS, resume os efeitos da conhecida explosão turística: “As pessoas da costa estão a vender as casas que os avós ou os pais deixaram e a mudarem-se para fora do município ou para o centro de Grândola. Há um despovoamento acelerado da costa. Há 20 anos não se acreditava. A classe média já não tem capacidade para comprar casa.”

O PESO DOS ESTRANGEIROS

Na zona costeira de Grândola, onde fica a Comporta, o capital é sobretudo estrangeiro, um traço comum a outros concelhos. Em Vila do Bispo, os €4,5 milhões arrecadados em 2021 vieram sobretudo da venda de casas a estrangeiros, e a receita continua a subir. “Em 2017 e 2018 começaram a reabilitar casas antigas nas aldeias, quase tudo para Alojamento Local. Agora, o que circula no mercado são só casas com valores muito elevados”, resume a presidente da câmara, Rute Silva. Cenário semelhante é o de Aljezur, concelho vizinho, onde também 26% da população é estrangeira, o que significa que uma parte dos investidores fixa amarras no território. Manuela Louro, da SW-Places, uma imobiliária local, identifica um aumento da procura para Alojamento Local, casas de férias e vistos gold, tendo os preços triplicado em três anos. “Os jovens portugueses que queiram cá ficar só conseguem se for em casa dos pais”, conclui.

Noutros pontos do país, porém, ainda são os portugueses quem mais compra: é o caso de Marvão, que viu a receita de IMT saltar de €26 mil para €189 mil. “Não nos surpreende o aumento. Temos clientes holandeses, alemães e espanhóis, mas desde a pandemia aumentou muito a procura de portugueses em fuga dos centros urbanos”, explica Maria João Serra, diretora da imobiliária Imodistrito. Também João Leal da Costa, proprietário da Quinta do Barrieiro Property Selections, confirma que os estrangeiros ainda não são os principais clientes. “Os portugueses continuam a comprar e fazem-no também para investimento. Querem ir a tempo de fazer transações que lhes tragam arrendamentos futuros.”

DESPOVOAMENTO, ISOLAMENTO, DUPLO PRIVILÉGIO

Este “sobreaquecimento do mercado imobiliário totalmente desproporcional em relação ao poder de compra da esmagadora maioria da população local” pode ter “efeitos graves para as populações”, reconhece João Ferrão. Por um lado, corre-se o risco de ficar com as aldeias vazias, como estará a acontecer na zona costeira de Grândola. “Há um esvaziamento completo. As aldeias estão a perder a sua dinâmica tradicional de vivência”, frisa Pedro Ruas. Por outro lado, poderão multiplicar-se situações de “coexistência não interativa”. Isto é, “as populações partilham um mesmo território mas os seus quotidianos desenvolvem-se basicamente em circuitos paralelos”, “concorrendo para uma dualização ‘nós versus eles’ socialmente pouco saudável”, explica o geógrafo João Ferrão.

O especialista alerta para o risco de os locais verem na população de fora, tanto portuguesa como estrangeira, uma “dupla” posição de privilégio. “Por um lado de estatuto, mas também de tratamento por parte das autoridades nacio­nais, regionais ou locais, que contrasta com o sentimento de abandono e subalternidade que, certa ou erradamente, eles sentem”, afirma. E isso pode levar a “um problema de ressentimento com uma possível tradução na diminuição de confiança nas instituições e na sociedade em geral”.

O QUE FAZER COM TANTO DINHEIRO?

Hoje em dia, cerca de 38% das receitas dos municípios são oriundas de impostos e taxas, e, apesar de o peso do imobiliário ter vindo a crescer, Maria José Fernandes não vê grande perigo. “Não entendemos que haja risco de excessiva dependência de receita do IMT face à diversidade de outras origens financeiras da receita municipal”, diz a professora universitária. O que não quer dizer que as receitas não tragam desafios adicionais.

Será o caso de Grândola, que chega a 2023 com um saldo de gerência de €40 milhões, um orçamento de €70 milhões e “sem conseguir fazer investimento público”. Por falta de estrutura, de recursos humanos, mas também por falta de estratégia, sublinha Pedro Ruas. “Não há medidas de habitação pública para fixar as pessoas.”

Outros executivos camarários já preparam respostas. Uma grande parte da receita em Vila do Bispo está a ser usada para financiar a construção de habitação social e a preços controlados para residentes e trabalhadores no concelho. “Quem quer constituir família e é daqui tem dificuldade em ficar, porque não consegue comprar casa e as rendas subiram para mais do dobro”, explica a autarca, Rute Silva. O mesmo plano prepara Almeirim: “Vamos agarrar na receita extra e comprar terrenos, dentro do perímetro urbano, para construir nova habitação” para a classe média, diz Pedro Miguel Ribeiro.

“Antigamente a classe média conseguia comprar casa, agora tem dificuldades. Temos de criar condições para estas famílias”, dizem os autarcas, que põem em marcha planos locais em simultâneo com os que o Governo está a preparar a nível nacional (ver Primeiro Caderno).

FRASES

“Agora já só há casas com preços mesmo muito elevados. E já nem os estrangeiros da classe média conseguem comprar”

Rute Silva

Presidente da Câmara de Vila do Bispo



“Há um despovoamento acelerado da costa. Há 20 anos não se acreditava”

Pedro Ruas

Deputado municipal do PS em Grândola

“O sobreaquecimento do mercado imobiliário desproporcional face ao poder de compra local tem efeitos graves para as populações”

João Ferrão

Geógrafo e antigo secretário de Estado do Ordenamento do Território


“Vamos agarrar na receita extra e comprar terrenos para construir nova habitação”

Pedro Miguel Ribeiro

Presidente da Câmara de Almeirim


ALGUNS CONCELHOS ONDE A RECEITA ESCALOU


MARVÃO

Perdeu 12% da população numa década e viu a receita crescer 626% entre 2012 e 2021. Desde a pandemia, tem havido um aumento da procura de casa por casais portugueses com filhos, em fuga das cidades, além dos que estão de olho no investimento turístico. Os preços ainda não são muito altos, o que tem motivado a procura, resume Maria João Serra, diretora da agência Imodistrito, lembrando que holandeses, alemães e espanhóis continuam a ser compradores. Em crescimento está também o interesse dos americanos, nota João Leal da Costa, proprietário da Quinta do Barrieiro Property Selections. A autarquia não respondeu ao Expresso.

MOURÃO

Com dez vezes mais receita em 2021 (€469 mil) do que em 2012 (€45 mil), o concelho tem 2 mil residentes e poder de compra abaixo da média (71%). “Os imóveis mais vendidos são habitações no centro histórico, normalmente devolutos ou em ruínas. Mas os encaixes mais significativos foram com imóveis rústicos, com várias vendas acima de €1 milhão”, descreve o autarca João Fortes, referindo o contributo dos estrangeiros. Fernando Costa Pereira, à frente da imobiliária Xamer, não duvida que a proximidade ao Alqueva “ajuda muito” e há casais estrangeiros a comprar casas com acesso direto à barragem.

VILA DO BISPO

A explosão das receitas deu-se a partir de 2017/18 com a reabilitação de casas mais velhas nas aldeias, muitas para alojamento local. Atualmente os imóveis vendidos são sobretudo moradias para férias, de valor muito elevado. “Já nem os estrangeiros de classe média conseguem comprar”, afirma a autarca, Rute Silva. O salto de €647 mil para um €4,6 milhões não dá ainda sinais de desacelerar: Vila do Bispo é o concelho onde o m2 mais subiu num ano, sendo agora mais caro do que no Porto.

ALJEZUR

Em três anos, os preços das casas triplicaram, o que ajuda a explicar a subida da receita de meio milhão de euros em 2012 para mais de €3 milhões. São sobretudo vendidas a alemães, holandeses, israelitas e americanos. “Procuram segundas habitações ou casas de férias, essencialmente moradias e quintas recuperadas com terreno”, diz Manuela Louro, da imobiliária SW-Places. “A procura aumentou nos últimos cinco anos, incluindo na pandemia, devido aos nómadas digitais.” A autarquia não respondeu ao Expresso.

ALCÁCER DO SAL

A receita de IMT disparou 838% entre 2012 e 2021, o que a autarquia desvaloriza — “comparativamente com Palmela, Setúbal, Grândola ou Santiago do Cacém, a receita bem menor”. E resulta sobretudo de “transações em prédios rústicos”. Duarte Silva, da Remax Alice Riverside, diz que durante a pandemia houve muitas compras de segunda habitação. O perímetro urbano tem também sido procurado por portugueses que não conseguem comprar junto ao litoral, e por vistos gold, que aproveitam as isenções fiscais nas áreas de reabilitação urbana. “Os locais têm muita dificuldade em comprar cá casa” e, com o Parque Logístico, a tendência é para os preços continuarem a subir, antecipa.

GRÂNDOLA

Perdeu 7% da população, com um rendimento de 90% da média nacional, e viu a receita imobiliária disparar 700%. A autarquia não falou ao Expresso. Pedro Ruas, deputado municipal do PS, diz que face à explosão do investimento estrangeiro em turismo, as pessoas estão a vender as casas na costa e a migrar para Grândola ou fora do concelho. “Neste momento ninguém consegue comprar uma casa no Carvalhal, em Melides. São nichos muito fechados.” “Há um despovoamento da costa”, lamenta.

ALMEIRIM

Uma parte da explosão de receita (quase 2000% numa década) é explicada por novos projetos de investimento que o concelho atraiu, como a Mercadona e a Fresh-52, e com os trabalhadores que os negócios trazem consigo. A habitação explica outra parte. “Tem havido mais procura que oferta. Enquanto antigamente a classe média conseguia comprar uma casa, agora tem dificuldades”, diz o presidente da Câmara, Pedro Miguel Ribeiro. O próximo passo é agarrar na receita extraordinária do IMT e construir habitação.

ALCOCHETE

Foi sobretudo a venda de apartamentos e de moradias que fez a receita de IMT disparar de €577 mil em 2012 para €5,7 milhões. Além de portugueses, há franceses, ingleses, espanhóis e escandinavos a comprar. “Maioritariamente, é para habitação”, diz a autarquia. “Também temos muita revenda de imóveis, com um peso significativo na receita.” Com poder de compra acima da média e mais 7% de residentes do que há uma década, o concelho tem vindo a absorver os residentes da capital que fogem dos preços das casas e das rendas.