Natália Faria, in Público online
Aos ex-membros da comissão continuam a chegar denúncias, apesar de já não estarem em funções. Para que não caiam em saco roto, apelam à criação urgente de um novo canal de atendimento às vítimas.
O inquérito criado para preenchimento pelas vítimas já não está disponível desde que, no passado dia 13, a comissão independente incumbida de fazer o levantamento retrospectivo dos abusos sexuais de crianças às mãos de membros da Igreja Católica cessou funções. Mas, desde então, os seis membros da comissão ainda não pararam de receber denúncias relativas a novos casos de abusos.
“É urgente que o Governo ou a Igreja abram uma nova linha para que as pessoas possam testemunhar”, apelou o psiquiatra Daniel Sampaio, considerando que era expectável que, uma vez apresentado o relatório, mais pessoas surgissem a querer testemunhar. “Estávamos à espera disso, mas as nossas funções terminaram”, enfatizou o ex-membro da comissão, cujo estudo estimou em pelo menos 4815 as crianças que, numa estimativa conservadora, foram abusadas por padres e outros membros da Igreja desde 1950 até à actualidade.
“Na rua, ao telemóvel que funcionou para a comissão, até para os locais e emails de trabalho dos ex-membros da comissão têm chegado testemunhos no pós-relatório”, confirmou o ex-coordenador da comissão, Pedro Strecht, para insistir na urgência de a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), ou alguém em seu lugar, avançar com a criação de uma nova comissão capaz de “assegurar um canal de comunicação aberto à recepção de denúncias ou testemunhos de abusos sexuais de crianças por membros da Igreja católica portuguesa”, tal como se lê na primeira das dezenas de recomendações deixadas no relatório sobre os abusos.
A ideia de criar uma nova comissão com psicólogos, assistentes sociais, terapeutas familiares, psiquiatras, juristas e sociólogos, entre outros, visa fundamentalmente garantir que haja uma instância externa à Igreja capaz de validar os testemunhos que forem chegando e de posteriormente os remeter ao Ministério Público (MP) ou “às estruturas de investigação e julgamento da própria Igreja”, ainda segundo o relatório.
À nova comissão caberia ainda "propor as soluções a adoptar, nomeadamente quanto ao tipo de medidas a aplicar ao infractor, à eventual indemnização a atribuir às pessoas vítimas e ao acompanhamento de que estas mostrassem carecer”, precisa ainda o relatório.
Do lado da Igreja, nenhuma decisão deverá ser tomada antes de 3 de Março, dia em que haverá uma assembleia plenária extraordinária dos bispos portugueses exclusivamente dedicada a discutir as conclusões do relatório. “Nessa altura será possível apontar medidas concretas a desenvolver”, como afiançou o presidente da CEP, D. José Ornelas, nas declarações prestadas logo após a divulgação do documento.
Além do encontro presencial com os bispos, os ex-membros da comissão independente irão na tarde desse mesmo dia encontrar-se com as ministras da Justiça e do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, num encontro pedido pelo primeiro-ministro, António Costa, para quem há claramente “um conjunto de lições” a retirar do relatório.
O alargamento da possibilidade de apresentação de queixa até a vítima perfazer os 30 anos de idade (23 anos, actualmente) é uma das propostas em cima da mesa, a par da possibilidade de se realizar um estudo similar ao promovido pela Igreja mas alargado à sociedade em geral, abarcando mais concretamente os principais espaços de socialização das crianças.
Bispos já conhecem os padres abusadores no activo
O dia 3 de Março será também o dia em que a comissão fará chegar aos bispos portugueses, bem como ao MP, a lista com mais de 100 nomes de membros da Igreja que continuam no activo, apesar de terem sido apontados como autores dos crimes de abuso sexual de menores.
Mas Daniel Sampaio vai adiantando que a Igreja não precisa de esperar por essa lista para começar a actuar. “A lista é apenas uma confirmação, uma revisão dos muitos casos que já são conhecidos dos bispos, isto é, cada bispo de cada diocese já foi confrontado pela equipa de historiadores com uma lista dos padres abusadores no activo”, adiantou.
O psiquiatra refere-se à investigação exploratória que uma equipa de historiadores fez aos arquivos eclesiásticos das diferentes dioceses para, sob coordenação de Francisco Azevedo Mendes, apontar as evidências existentes naqueles arquivos dos casos de abuso sexual de menores por eclesiásticos portugueses entre 1950 e 2022. “Quando os historiadores tiveram acesso aos arquivos, já tinham uma lista de padres abusadores que tinha sido fornecida pelas vítimas à comissão independente. E eles próprios descobriram depois nos arquivos novos padres abusadores. Portanto, a Igreja não tem de esperar por lista nenhuma para começar a actuar”, insiste Sampaio.
Do mesmo modo, o psiquiatra reafirma que é urgente que o Governo encontre dentro do Serviço Nacional de Saúde (SNS) uma forma de dar prioridade às vítimas de abuso sexual que precisem de atendimento psicológico ou psiquiátrico. “As vítimas precisam de ver garantido este apoio psicológico e psiquiátrico e é urgente garantir-lhes um acesso fácil às consultas”, reiterou, repisando os apelos feitos durante a apresentação do relatório, e que já mereceram do ministro da Saúde, Manuel Pizarro, a garantia de que melhorará os cuidados de saúde mental, nomeadamente a todas as vítimas de abuso sexual.