15.2.23

Até 2030 a roupa terá um passaporte digital que permitirá controlar a pegada ambiental do que vestimos

Carla Tomás, in Expresso

Portugal está a inovar para se pôr no pelotão da frente da certificação e valorizar o seu “passaporte” nos têxteis e esta quinta-feira apresenta as novidades do programa bea@t que conta com apoio do Plano de Recuperação e Resiliência (PPR)

Uma camisola de lã comprada há 20 anos pode ter melhor aspecto do que uma comprada no início deste Inverno. Esta constatação é básica, tal como a noção de que a maioria das roupas à venda nas lojas de fast fashion são para usar e deitar fora. O problema é que esta tendência tem sérias consequências ambientais, ou não fosse a indústria da moda uma das mais poluentes. Na ânsia de comprar e vender mais e mais, a qualidade das peças de roupa tem decrescido. Por vezes, encontram-se expostas nas lojas peças já com borboto, com costuras tortas e tecidos sintéticos que parecem desgastar-se em menos de nada.

Há perto de um ano, a 30 de março de 2022, a Comissão Europeia aprovou um pacote de regulamentos (Regulation on Ecodesign for Sustainable Products) com vista a tornar os produtos de consumo, entre os quais os têxteis, mais duráveis e mais fáceis de reparar, reutilizar e reciclar até final desta década. Este pacote de regulamentos inclui a criação de um “passaporte digital” (EU Digital Product Passport) – com código QR – para todos os produtos de consumo, nomeadamente a roupa comercializada no mercado europeu, de modo a enfrentar o problema da moda efémera ou fast fashion e a estimular a inovação no setor.

Ainda não há data para a entrada em vigor deste “passaporte digital”, apenas se sabe que deverá estar a funcionar antes de 2030. A medida enquadra-se no Pacto Ecológico Europeu (Green Deal) e no Plano de Ação para uma Economia Circular e visa dar mais poder aos consumidores para poderem escolher produtos mais sustentáveis. A partir de um QRCode na etiqueta, vão poder aceder a informação sobre a origem das matérias-primas e da confeção, e sobre os potenciais impactos ambientais e sociais de cada peça de roupa.

Este passaporte terá uma lista extensa de dados que inclui: a origem das matérias-primas, do design e da confeção; o prazo de garantia do produto, instruções de uso e de lavagem; dados sobre o tipo de fibras e os químicos utilizados, assim como quanta água e energia foram utilizadas e quantas emissões de CO2 emitidas para a produção de uma única peça de roupa; dados de certificação sobre o cumprimento de obrigações sociais e laborais; e ainda informação sobre potencialidades de reutilização, reciclagem ou outro destino no fim de vida.

“Este passaporte será exigido a todos os produtos têxteis produzidos e comercializados na Europa e permitirá aos retalhistas uma escolha de acordo com a sua grife e o mercado; e aos consumidores uma escolha consciente”, frisa ao Expresso António Braz Costa, diretor-geral do Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal - CITEVE. E acrescenta: “Os consumidores têm de se habituar a comprar roupa bem feita e que respeita o ambiente, como a produzida em Portugal, mas não podem querê-la a 1€ por peça”.

PORTUGAL FAZ TECIDOS A PARTIR DE CELULOSE, EM SUBSTITUIÇÃO DO PETRÓLEO

A indústria têxtil portuguesa quer demarcar-se pela positiva no mercado e não teme este passaporte, adianta Braz Costa, mas não se pode esperar que a roupa saia barata, adverte. O caminho passa pela inovação e pela aposta na bioeconomia. O programa “Beat by be@t” – dedicado a designers e pequenas e médias empresas, visa promover a sustentabilidade e a bioeconomia na indústria têxtil e da moda – vai ser lançado esta quinta-feira (16 de fevereiro), na 61.ª edição da Modtíssimo, na Exponor.

Liderado pelo CITEVE, o projeto be@t, reúne meia centena de entidades, entre as quais o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (BSCD Portugal) e conta com um investimento de 138 milhões de euros entre 2022 e 2025 (€71 milhões dos quais do PRR). “Estamos a apostar na criação de novas instalações que permitem substituir fibras baseadas em petróleo por outras à base de celulose ou de biomassa, por exemplo, o que também permite reduzir as emissões carbónicas do transporte”, explica o diretor-geral do CITEVE. Resinas, cogumelos, escamas de peixe, palha de arroz, cânhamo e folhas de bananeira ou de ananás também são novas matérias-primas que já entram na indústria têxtil nacional e são consideradas mais sustentáveis que os polímeros sintéticos com origem em combustíveis fósseis.

O projeto inclui ainda outros pilares, como o recurso a materiais reciclados, metodologia para medir a sustentabilidade da produção (importante para o passaporte digital). “O quarto pilar é a comunicação virada para um consumo mais sustentável, e que é dirigida aos diferentes stakeholders da cadeia, até aos retalhistas e aos consumidores”, acrescenta Braz da Costa. E o objetivo é “valorizar a imagem de Portugal no sector têxtil e da moda”. Cerca de 75% do que é produzido a nível nacional é exportado.

Então em que beneficia o consumidor português, perguntamos. “Os produtos portugueses não podem endereçar as classes mais baixas de preço”, responde Braz Costa. Lembra que “sem passaporte digital, o consumidor é arrasado pelo greenwashing”. E defende melhorias na balança comercial, reduzindo importações e apostando na produção nacional.

ACABAR COM O ECOBRANQUEAMENTO

O futuro “passaporte digital” vai permitir controlar o ecobranqueamento ou greenwashing de muitas marcas que apresentam produtos como “verdes” ou “bio” sem o serem verdadeiramente. Braz Costa exemplifica: “Se apenas 1% do algodão produzido no mundo é orgânico, como é possível tanta etiqueta a referir algodão orgânico se não for greenwashing”.

A Associação de Defesa do Consumidor avançou recentemente com uma campanha de alerta contra o “ecobranqueamento”, alertando os consumidores para que os produtores “não se pintem de verde”. Para contornar esta “fraude”, a Deco aconselha os consumidores preocupados com as questões ambientais a procurarem produtos certificados com o rótulo ecológico europeu “EcoLabel”.

Nos têxteis existe já uma certificação ecológica denominada “OEKO-TEX®” para tecidos e couro, que garante a não utilização ou o cumprimento dos valores limite de determinadas substâncias químicas (proibidas ou autorizadas em determinadas quantidades). Estes parâmetros também vão estar incluídos no passaporte digital. Ver-se-á se assim se consegue reduzir a quantidade das peças de roupa de fraca qualidade à venda e que duram hoje muito menos do que as compradas há uma ou duas décadas.

Europeus indicam que cada habitante compra seis quilos de roupa, calçado e outros têxteis por ano e que, para satisfazer esta procura, são utilizadas anualmente 175 milhões de toneladas de matérias-primas. Para Elsa Agante, da Deco, “só se inverte esta tendência mudando comportamentos dos consumidores e dos produtores e controlando o ecobranqueamento”.

A produção têxtil mais do que duplicou em duas décadas. Enquanto que há 20 anos cada pessoa comprava em média cerca de dois quilos de roupa por ano, agora compra seis quilos e usa-a metade do tempo. O consumo tende a triplicar até 2050.

“A fraca qualidade nem dá para reutilização ou para doar para instituições de caridade”, lembra Susana Fonseca, da associação Zero. E reforça: “sem novos regulamentos, as marcas não se vão mexer e vamos ver como e quando vai funcionar o passaporte digital”. A CE quer que, até 2030, todos os produtos têxteis que entrem no mercado europeu sejam duráveis e reparáveis, que usem mais fibras recicláveis, livres de produtos tóxicos e respeitadoras dos direitos sociais e laborais.

Cada europeu deita para o lixo 11,3 kg de roupa usada por ano e apenas 1% é reciclado. Em Portugal descarta-se por dia 507 mil quilos de vestuário e calçado, o que equivale a 1,5 kg por pessoa por mês. O sistema de recolha de roupa e outros têxteis para reciclagem ao estilo dos ecopontos em meio urbano só deverá entrar em funcionamento em Portugal em 2025, se não houver atrasos na regulamentação.

Tendo em conta estes números, não é de estranhar que a produção e consumo de têxteis ocupe o quarto lugar em termos de impacto no ambiente e nas alterações climáticas, a seguir à alimentação, habitação e mobilidade; e integre o “top 3” das pressões sobre o uso de água e do solo, de acordo com dados da Comissão Europeia.