Portugal registou 1099 mortes acima do esperado entre 28 de Novembro e 18 de Dezembro. No início deste ano, o Instituto Ricardo Jorge identificou já mais 483 óbitos em excesso.
2022 voltou a ser um ano com um elevado excesso de mortalidade por todas as causas na maior parte dos países europeus. Numa altura em que o peso directo da covid-19 diminuiu substancialmente, nas últimas semanas de 2022, nos 28 países e regiões que reportam dados ao projecto de monitorização da mortalidade em excesso EuroMomo, atingiu-se mesmo o segundo maior pico de óbitos acima do esperado desde o início da pandemia, suplantado apenas pelo extraordinário cume observado logo na Primavera de 2020.
Para este pico, observável no site do EuroMomo (European Monitoring of Excessive Mortality), contribuíram essencialmente países como a Alemanha e o Reino Unido, e, ainda que em menor escala, França, Países Baixos, além da Áustria, Dinamarca e Bélgica, entre outros, onde o frio e a epidemia de gripe sazonal e de outros vírus respiratórios terão tido um maior impacto na mortalidade.
Portugal também viu a curva das mortes acima do esperado subir um pouco no final de 2022. Ao longo do ano passado, Portugal surge nos gráficos do EuroMomo com dois picos destacados de excesso de mortalidade na sequência das duas ondas de calor, em Junho e Julho, e, de novo, observa-se um pequeno cume no fim de 2022, mas o excesso de mortalidade que aí sobressai até é inferior ao verificado em Invernos de anos anteriores à pandemia, como em 2018 e 2019.
Neste inverno, o Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (Insa) identificou já um período de excesso de mortalidade em três semanas do final de 2022 - 1099 óbitos acima do esperado, entre 28 de Novembro e 18 de Dezembro. Um aumento de mortalidade que, enfatiza, “correspondeu ao pico de actividade gripal em Portugal”. Foi na região Norte que teve maior duração (quatro semanas) e impacto (584 óbitos) e, por faixas etárias, a população com mais de 85 destaca-se claramente como a principal atingida, com "1033 óbitos" em excesso.
Já no início deste ano, o Insa identificou um novo período de excesso de mortalidade, que começou em 30 de Janeiro e “ainda está a decorrer”, atingindo agora exclusivamente a população com mais de 75 anos. Em duas semanas (30 de Janeiro a 12 de Fevereiro), estima que tenham ocorrido 483 mortes acima do esperado, excesso que “deverá estar relacionado com o período de frio extremo que ocorreu no início do ano”.
Relativamente ao excesso de mortalidade observado no final de 2022 em vários países europeus, este estará “provavelmente associado à epidemia de gripe, que esta época ocorreu mais precocemente em toda a Europa”, justifica, por escrito, Ana Paula Rodrigues, do Departamento de Epidemiologia do Insa, que pede cautela na análise dos dados do EuroMomo. Porquê? Porque é difícil estabelecer comparações com períodos de excesso de mortalidade anteriores, uma vez que “as linhas de base (mortalidade esperada) não têm em conta a mortalidade observada desde 2020, por causa das importantes variações da mortalidade observadas com a pandemia”.
Em 2022 houve menos 313 óbitos do que no ano anterior
Seja como for, os números actualizados no final da semana passada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que acabámos 2022 com um total de 124.872 óbitos, menos 313 do que em 2021, o ano em que tivemos um pico extraordinário de mortalidade em Janeiro e Fevereiro por causa da pior onda de covid-19. Mas, se a comparação for feita com 2019, a diferença é substancial – foram mais 12.529 óbitos.
O INE destaca o indicador do excesso de mortalidade calculado pelo Eurostat, que compara o número de óbitos registados em cada mês nos países da União Europeia e na Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça, com o número médio de mortes no período 2016-2019. Segundo o Eurostat, Portugal registou em 2022 excesso de mortalidade em todos os meses, menos em Janeiro. Exceptuando a Bulgária e a Roménia, no ano passado todos os os países da União Europeia apresentaram excesso de mortalidade, assinala o instituto.
O que parece claro é que na maior parte dos países não se regressou ao padrão de mortalidade anterior à pandemia, como era esperado. O fenómeno do elevado excesso de mortalidade por todas as causa está a intrigar os especialistas, que colocam em uníssono a questão: por que é que continuam a morrer tantas pessoas? A resposta não é simples.
“Normalmente nas situações de excesso de mortalidade não há um único factor”, enfatiza Joan Carles March, professor da Escuela Andaluza de Salud Pública ao jornal El Mundo. “Creio que os três eixos em que assenta o excesso de mortalidade são a covid, as temperaturas e os problemas da assistência sanitária”, especula.
Temos que olhar com cuidado para os gráficos do EuroMomo, começa por advertir também o especialista em bioestatística Paulo Jorge Nogueira, que estuda há décadas o fenómeno da mortalidade. Antes da pandemia de covid-19, em anos de epidemia de gripe e períodos de frio mais intensos, havia sempre picos de excesso de mortalidade, lembra.
Relativamente ao elevado número de mortes por todas as causas registado em 2022, o professor na Escola Nacional de Saúde Pública acredita que se fica a dever em parte ao envelhecimento da população – que estava a aumentar "consecutivamente" há vários anos, ainda que com oscilações anuais. “Mas o envelhecimento da população não explica tudo”, assume.
“Toda a gente achava que íamos voltar ao antigamente, mas este padrão de mortalidade veio para ficar e não é de esperar que as coisas mudem muito”, reflecte.“Há factores sociais e económicos, há toda uma panóplia de motivos, e há pequenos sinais que indicam que pode estar a ocorrer uma degradação, um retrocesso, mas agora é preciso estudar, olhar para as causas de morte, não apenas para o excesso”, recomenda.
“O habitual era os elevados excessos de mortalidade estarem associados a fenómenos agudos, como a gripe ou o calor. Termos a mortalidade persistentemente acima de linha de base é uma mudança de padrão e um alerta”, sustenta Vasco Ricoca Peixoto, investigador da Escola Nacional de Saúde Pública, que sugere igualmente "um conjunto grande de hipóteses" para explicar a continuidade deste fenómeno.
“Sabemos que a infecção [por SARS-CoV-2] aumenta o risco de descompensação de várias doenças, por um lado”, e, por outro, é preciso também levar em conta “o impacto social da pandemia nas populações já vulneráveis em termos sócio-económicos e de isolamento”. A somar a tudo isto, “houve muito menos consultas, cirurgias, rastreios” no primeiro ano da pandemia “e algumas coisas nunca se recuperam”, observa. "Os serviços de saúde também se ressentiram, alguns perderam profissionais", acrescenta, defendendo igualmente que agora é preciso esmiuçar e olhar para as causas de morte.