Ana Cristina Pereira, in Público
O número está a subir há sete anos. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras contava mais de 757 mil estrangeiros residentes no final do ano. Só em 2022, deferiu 113 mil novas autorizações de residência, às quais terão de se acrescentar os 58 mil ucranianos a quem concedeu protecção temporária. Há ainda 300 mil imigrantes a aguardar pela regularização da sua situação, metade dos quais da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).Com o novo regime de imigração, que entrou em vigor em Novembro, qualquer pessoa pode pedir um visto de 120 dias para vir procurar trabalho. Os cidadãos da CPLP vão ter direito a autorização de residência automática de um ano. O ministro da Administração Interna já disse que a plataforma digital que tornará isso possível deve estar pronta até final de Março. Falámos com a alta comissária das Migrações, Sónia Pereira, sobre alguns desafios que esta nova realidade põe.No início da guerra, o ACM criou canais de comunicação próprios para apoiar os refugiados da Ucrânia. Que tipo de situações continuam a chegar a esses canais?
O fluxo de perguntas não é tão intenso como nos primeiros meses, em que havia uma grande preocupação com a vinda. As questões mais recentes têm que ver com a permanência em Portugal – por exemplo, pessoas que aguardam resposta aos pedidos de protecção temporária e situações relacionadas com o acesso a serviços.
Falando com ucranianos, emerge a preocupação com quase dez mil crianças não matriculadas nas escolas portuguesas…
Isso está em grande medida relacionado com a manutenção nas escolas na Ucrânia. Foram feitos vários apelos para que as crianças ucranianas, mesmo tendo essas aulas online, pudessem frequentar escolas portuguesas. Houve flexibilidade por parte do Ministério da Educação para uma frequência de aulas de Língua Portuguesa combinadas com outras disciplinas menos exigentes do ponto de vista académico, como Educação Física. O ministério disponibilizou um folheto em ucraniano.
E o ACM?
Organizámos, com a Protecção de Crianças e Jovens, acções de sensibilização para a importância da frequência da escola. Pedimos às associações [de imigrantes] e aos centros locais de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM) para estarem atentos às famílias no sentido de identificar se as crianças estavam na escola ucraniana ou não e sinalizar situações de risco. [Nas acções realizadas foi sinalizado apenas um caso de uma criança que não estava em qualquer sistema de ensino.] É preciso acompanhar as famílias nesse processo de adaptação à escola portuguesa, mostrar que há alguma flexibilidade, apesar de a escolaridade ser obrigatória em Portugal. É este trabalho de sensibilização, de informação e de acompanhamento que temos vindo a fazer.
Ainda assim, a inscrição das crianças e jovens nas escolas portuguesas está abaixo do expectável.
Há quem reclame mais apoio nas escolas.
Para haver mais apoio é preciso que cheguem às escolas. E é esse trabalho que é necessário fazer. Sabemos que este ano foi difícil até para as famílias perceberem quais seriam as oportunidades reais de regresso à Ucrânia. Agora, com o prolongar da guerra, é provável que as famílias que estão em Portugal considerem a inscrição das crianças na escola. O Ministério da Educação está consciente da necessidade de reforçar equipas multidisciplinares que possam dar acompanhamento em várias áreas, incluindo psicológico.
Agora, com o prolongar da guerra, é provável que as famílias que estão em Portugal considerem a inscrição das crianças na escola. O Ministério da Educação está consciente da necessidade de reforçar equipas multidisciplinares que possam dar acompanhamento em várias áreas, incluindo psicológico.
Com 58 mil pessoas da Ucrânia a pedir protecção temporária, o que ficou por fazer com os refugiados oriundos de outros países?
São dois processos diferentes. As pessoas vindas da Ucrânia tiveram acesso ao mecanismo de protecção temporária, que não interferiu com os processos de protecção internacional que abrangem outras pessoas. Isso manteve-se a funcionar nos moldes habituais.
O que é que se aprendeu com a experiência ucraniana que possa ser replicado?
O procedimento de comunicação entre as várias áreas. Testou-se com os deslocados da Ucrânia o sistema de articulação entre a área do controlo e gestão de fronteiras e o acesso à Segurança Social, à Saúde, à Autoridade Tributária. Isso é interessante e útil como referência para facilitar outros processos de regularização administrativa.
Há migrantes que recorrem aos CLAIM, porque precisam de apoio jurídico, e são encaminhados para outro lado. Não devia o ACM assumir essa responsabilidade?
Os CLAIM são parcerias que o ACM estabelece com municípios, entidades da sociedade civil, etc. São mais generalistas. Muitas vezes, não têm um nível de especialização jurídica que lhes permita lidar com casos complexos.
Um dos trabalhos realizados ao longo do último ano, ano e meio, foi o reforço da ligação entre os CLAIM e os centros nacionais de Apoio à Integração de Migrantes, CNAIM, onde estão os gabinetes especializados do ACM. Entendemos que é importante haver esse apoio mais constante. Vamos reforçar ainda mais, através do investimento numa plataforma digital que vai permitir muito em breve a realização de vídeo-conferência entre os CLAIM e os nossos gabinetes especializados.
Portugal tem um novo regime de imigração. Há vistos de seis meses para quem quer vir procurar trabalho. E vai haver vistos automáticos de um ano para cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Como é que o ACM se está a preparar para esta nova realidade?
Para além da formação interna aos nossos técnicos para estarem preparados para lidar com esta nova lei, o ACM já iniciou um conjunto de acções de formação/sensibilização destinadas às entidades parceiras, ao Conselho para as Migrações. No fundo, para dar a conhecer as alterações para que estas também possam ser apropriadas pelos diferentes actores que intervêm nesta matéria.
Uma boa parte das situações de exploração resulta da maior vulnerabilidade dos migrantes por não terem enquadramento institucional nos processos migratórios. Havendo um fluxo regular mais estável, é expectável que a actividade das redes que alimenta os fluxos irregulares diminua.
Também estamos a trabalhar de forma mais próxima com a Direcção-Geral de Serviços Consulares e Comunidades Portuguesas, para que possa haver mais transmissão de informação relevante às pessoas que se dirigem às embaixadas para obter vistos, para que saibam à chegada a Portugal que existe um serviço como o ACM, que serviços é que têm, que apoios podem ter em Portugal, para estarem mais informadas e enquadradas no seu processo migratório.
Espera um aumento do fluxo migratório?
Havendo um mecanismo facilitador da migração regular e necessidades no mercado de trabalho em Portugal, é muito expectável que as pessoas que estão nos países de origem com vontade de migrar aproveitem a oportunidade para desenvolver o seu processo migratório de uma forma regular, organizada.
Tem havido inúmeros casos de exploração laboral e habitacional. Como irá o país responder a esse aumento do fluxo migratório?
É um aumento do fluxo nos registos que acompanhamos. Há um conjunto de fluxos que não acompanhamos tanto, porque são menos registados. Uma boa parte das situações de exploração resulta da maior vulnerabilidade dos migrantes por não terem enquadramento institucional nos processos migratórios. Havendo um fluxo regular mais estável, é expectável que a actividade das redes que alimenta os fluxos irregulares diminua.
O país tem ofertas de trabalho e capacidade de acolhimento. As instituições estão preparadas. Têm experiência e robusteceram-se. A rede de apoio cresceu. O IEFP, com este enquadramento, também dá maior apoio na empregabilidade. O que ouvimos, quer dos municípios quer das empresas, é vontade de receber trabalhadores. Havendo esta informação e acompanhamento institucional, o que é expectável é que as pessoas sejam sujeitas a menos situações de exploração.
O acesso à habitação não parece simples…
A questão da habitação é crítica. Tem havido um investimento na identificação de soluções. Há medidas propostas para lidar com a situação. Apesar de essa questão ser transversal, a realidade de cada município é muito diferente. E muitos têm tido a capacidade de mobilizar recursos para reabilitar habitação, para investir em nova habitação, para criar nos seus territórios a habitação necessária ao dinamismo demográfico.
Há um dinamismo associado à criação de habitação, aliada às ofertas de emprego e à necessidade de captar e fixar população, que é diferente do que observamos nos grandes centros urbanos.
Como viu os casos de violência em Olhão?
Com preocupação, mas como casos isolados, que não reflectem nenhuma tendência, nenhum padrão, nada que seja estrutural, que não seja um crime pontual contra pessoas percepcionadas como estando em situação de maior vulnerabilidade, neste caso imigrantes. Não temos nenhum indício de que possa estar em causa algo mais abrangente do que isto. De qualquer modo, é importante estarmos atentos.
Como encara o futuro? Haverá risco de aumento de comportamentos xenófobos, na conjugação de baixos salários, crise da habitação, aumento de fluxo migratório?
Devemos encarar o futuro com base nas respostas que estamos a preparar no presente. Do lado do ACM, criámos mais um CNAIM, continuamos a expandir a rede de CLAIM, reforçámos a linha de atendimento telefónico. Estamos a investir na modernização e digitalização para melhorar os procedimentos de comunicação e de articulação entre as várias áreas. Temos uma dinâmica de trabalho com outras entidades que actuam também junto de migrantes, o que nos permite ter confiança.
No contexto da política migratória, esta nova regularização desde a origem também nos dá confiança neste processo. Temos um plano de combate ao racismo e à discriminação que faz com que as entidades do nosso ecossistema público estejam atentas, implementem medidas, desenvolvam acções, trabalhem connosco nesse âmbito. Portanto, o contexto tem muitos desafios, mas tem também um conjunto de medidas e de respostas que nos dão confiança no trabalho que podemos desenvolver.