A subida galopante dos preços e a queda do rendimento disponível motivada pela inflação têm agravado a crise habitacional. Ao PÚBLICO, 12 pessoas contam como é morar em casas que não escolheriam.
Vivem com amigos, às vezes com desconhecidos. Voltam para casa dos pais ou não conseguem sair da que partilham com ex-companheiros. Têm casa, mas vivem sob a ameaça constante de despejo. Ou deixam-se estar, resignados a casas de que não gostam em zonas que não escolheriam se tivessem opção. É este o retrato da crise habitacional em Portugal, uma realidade que dura há vários anos, mas que tem vindo a agravar-se de forma drástica e que já levou o Governo a reagir com um pacote legislativo que, entre outras medidas, prevê uma intervenção estatal no mercado privado. Enquanto as respostas não chegam ao terreno, são cada vez mais os casos como os das 12 pessoas que contam ao PÚBLICO como é não ter dinheiro suficiente para uma casa digna.
Partilha de casa triplicou numa década
"Todas as vezes que partilhei casa foram más experiências". O problema não estava nas casas, mas em quem as ocupava. "As pessoas têm diferentes hábitos e sempre foi frequente lidar com a sujidade e o barulho dos outros. A partir de certa idade, uma pessoa sente a necessidade de ter o seu espaço, a sua privacidade, o seu sossego." Para Marta Pinha, a idade foi 30 anos.
"Por uma questão de bem-estar mental", deixou de conseguir partilhar casa e, no ano passado, acabou por arrendar aquilo que o salário de 920 euros líquidos por mês lhe permitia. "Uma única divisão minúscula. O meu quarto é também a minha cozinha. A humidade é imensa, a minha roupa fica com bolor e já tive infecções respiratórias", conta sobre o seu T0 de 400 euros, mais 70 de despesas, no Porto.
Por conta dos problemas deste estúdio, Marta está novamente à procura de casa e, incapaz de comportar o aumento de preços que se fez sentir no espaço de apenas um ano, prepara-se para voltar a fazer parte da população que vive com amigos ou, muitas vezes, com desconhecidos. São, de acordo com os números mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), cada vez mais.
Ter de esperar para cozinhar se o fogão estiver ocupado; ter de lavar a roupa noutro dia; ter de informar se decido ter alguém comigo em casa e ter de aceitar se outros o fazem; ter de ter cuidado com a forma como vou ao frigorífico a meio da noite, não vá cruzar-me com alguém: nada disto me faz sentido e, ainda assim, não tenho outra opção senão fazê-lo Maria
Em 2021, segundo o Censos relativo a esse ano, existiam, em Portugal, 62.709 "agregados domésticos privados sem núcleos familiares" e com "pessoas não aparentadas", isto é, pessoas que vivem no mesmo alojamento, mas que não formam uma família. É um número proporcionalmente baixo, representando apenas 1,5% dos mais de 4,1 milhões de alojamentos familiares existentes em Portugal, mas que corresponde a um aumento de 192% (ou seja, quase o triplo) face a 2011, quando existiam apenas cerca de 21 mil destes agregados.
Maria Lopes, de 30 anos e natural de Tondela, não consegue deixar de pertencer a este grupo demográfico desde 2010, altura em que foi estudar para Coimbra. Daí, partiu para Lisboa em 2013 e nunca deixou de partilhar casa. "Durante cerca de sete anos, com amigos de Tondela, que também cá estudaram e acabaram por ficar a trabalhar (a maior parte já não o faz). Depois, vivi um ano com um ex-namorado. Actualmente, estou há dois anos a partilhar casa com cinco pessoas aleatórias, mais ou menos desconhecidas, tirando uma, de quem já era amiga e através da qual tive conhecimento deste espaço."
A trabalhar há sete anos numa empresa do sector do turismo, Maria paga 450 euros por mês para ocupar um quarto, com casa de banho incluída, de 14 metros quadrados. É o único espaço desta casa numa zona central de Lisboa que é exclusivamente seu; tudo o resto é partilhado com as outras cinco pessoas, duas das quais não falam português. "Ter de esperar para cozinhar se o fogão estiver ocupado; ter de lavar a roupa noutro dia se a máquina estiver ocupada, ou se não houver espaço para secar; ter de informar se decido ter alguém comigo em casa e ter de aceitar se outros o fazem; ter de ter cuidado com a forma como vou ao frigorífico a meio da noite, não vá cruzar-me com alguém: nada disto me faz sentido e, ainda assim, não tenho outra opção senão fazê-lo", resume.
Pediram-nos três rendas adiantadas e compra dos electrodomésticos com o NIF da senhoria ou tínhamos de ter fiador, o que não é fácil de obter Joana
A falta de opção é fácil de entender. Se, "até há cerca de cinco anos", conseguiu sempre encontrar quartos a preços que considerava razoáveis, "nunca mais de 350 euros, com contas incluídas", esses mesmos quartos "estão hoje a ser arrendados por valores muito mais insensatos". Os dados oficiais ilustram bem essa percepção: no espaço de cinco anos, entre 2017 e 2022, o valor mediano das rendas no concelho de Lisboa cresceu quase 40%, de acordo com o INE.
A isso, junta-se a dificuldade em aceder aos poucos apoios existentes. "Tentei concorrer ao Porta 65, mas a minha candidatura não foi aprovada, uma vez que o espaço que eu arrendo não é considerado, logicamente, uma casa, mas sim uma divisão pertencente a uma residência composta por mais divisões", diz. Explica que não consegue candidatar-se a este apoio para arrendar outra casa, já que o Porta 65 exige que, para se candidatarem, os beneficiários já tenham um contrato de arrendamento assinado previamente. "Sem garantias de que a candidatura venha, meses depois, a ser aceite."
É perante este cenário que um salário acima da média deixa de ser suficiente para encontrar a solução habitacional ideal. Isso mesmo acontece com Joana (nome fictício), que, aos 33 anos e a receber 1300 euros todos os meses, se prepara para mudar de casa pela quarta vez em oito anos, depois de ter passado os últimos dois anos e meio a partilhar, com uma amiga, um T2 em Lisboa por 750 euros, com problemas de canalização que levavam a inundações na cozinha, e com bolor, infiltrações na casa de banho, janelas e portas mal isoladas, estores estragados e água a cair dentro da sala, onde o tecto tinha rachas provocadas por obras no andar de cima.
Sem o contrato renovado, Joana e a actual colega de casa vão, agora, juntar-se a mais um amigo e arrendar um T3, também em Lisboa, por 1300 euros por mês. "Pediram-nos três rendas adiantadas e compra dos electrodomésticos com o NIF da senhoria ou tínhamos de ter fiador, o que não é fácil de obter. Esperamos conseguir uma casa com os nossos respectivos namorados, mas, a ter de mudar de casa assim com tanta frequência, fica difícil conseguir ter poupanças. E, mesmo com trabalhos relativamente estáveis e a receber melhores salários, os mesmos não acompanham a subida de preços das casas", lamenta. Joana, além do trabalho a tempo inteiro como médica veterinária, ainda trabalha esporadicamente durante a noite, para além de obter um rendimento extra de espectáculos artísticos que faz – "Nem assim consigo poupar", desabafa.
Entre desconhecidos ou os pais, os pais
O plano era que a solução fosse temporária. Depois de dois anos a viverem em casas arrendadas sem contrato, na periferia de Lisboa, a ganharem o salário mínimo e com um filho ainda bebé, Catarina (nome fictício) mudou-se com o companheiro, em 2015, para casa dos pais dele, para conseguirem poupar dinheiro e, depois, comprarem casa própria. A precariedade laboral e a evolução do mercado imobiliário transformaram o temporário em permanente e já passaram mais de sete anos desde que Catarina, agora com 34 anos e desempregada, se viu obrigada a viver com os sogros.
Tenho um tecto, tenho comida, roupa lavada, mas parece que estou sempre a andar em cima de um elástico, que, a qualquer momento, rebenta Catarina
"Trabalhava num call center, sempre com empresas de trabalho temporário. Estive sete anos a trabalhar no mesmo sítio, mas, de dois em dois anos, éramos obrigados a mudar de empresa de trabalho temporário. Portanto, nunca tive um contrato efectivo e não conseguíamos pedir crédito para comprar casa. No último trabalho em que estive, tinha tudo preparado para ficar efectiva e irmos logo ver que crédito conseguiríamos pedir, quando fui informada de que não iam tornar-me efectiva e fiquei desempregada", relata.
Com o companheiro ainda a ganhar o salário mínimo, um filho agora com oito anos, crédito do carro para pagar, rendas que ultrapassam em muito os rendimentos que têm disponíveis e sem outra rede de apoio familiar que não os sogros, com quem não tem uma boa relação, Catarina mantém-se presa a uma casa onde não quer viver, mas de onde não consegue sair.
"Tenho um tecto, tenho comida, roupa lavada, mas parece que estou sempre a andar em cima de um elástico, que, a qualquer momento, rebenta. Não temos para onde ir, as rendas estão muito acima do que podemos pagar. Pedem-nos sempre duas rendas, mais fiador e contrato de trabalho, que, neste momento, não estou a conseguir encontrar. Há dias desesperantes, em que só me apetecer desaparecer. Mas ia para onde?", questiona-se.
Não é a única que não sabe para onde ir. E, em muitos casos, a necessidade de voltar a casa dos pais depois de já terem conhecido a independência financeira surge ainda mais tarde na vida. Hoje com 41 anos, Tiago (nome fictício) voltou a viver com os pais, em Loures, em 2018, depois de ter dedicado 15 anos à vida religiosa, período durante o qual viveu na casa de formação da ordem a que pertenceu e numa comunidade religiosa.
Marcelo Caldas, de 43 anos, regressou a casa dos pais no ano passado, depois de terminar uma relação, com o objectivo de ficar por lá durante alguns meses, antes de conseguir nova casa para si. "Via uma casa e ligava de imediato. Perdi todos os apartamentos porque alguém oferecia um ano de renda, ou porque alguém propunha uma renda muito acima da anunciada", conta. Acabou por se deixar ficar com os pais.
Ambos trabalham e recebem salários em linha com a média nacional ou acima. Tiago, técnico de gestão financeira numa organização não governamental, leva mil euros no final do mês. Marcelo, professor de português para estrangeiros, chegou a suportar, sozinho, um T2 em Alvalade com uma renda de 800 euros, quando, em 2016, chegou a Portugal vindo do Brasil, de onde é natural. Mas ambos enfrentam, também, os mesmos obstáculos: não têm contratos de trabalho permanentes, o que exclui a hipótese de contraírem crédito para comprar casa, são solteiros e não têm vontade de partilhar casa com desconhecidos.
Perdi todos os apartamentos porque alguém oferecia um ano de renda, ou porque alguém propunha uma renda muito acima da anunciada Marcelo
Optam pelo que já é familiar. "Conheço muitas pessoas que tiveram de deixar de viver sós e passaram a partilhar casa com mais pessoas, às vezes com desconhecidos. Essa é uma escolha que eu não quis fazer. Se é para estar a viver com desconhecidos, prefiro viver com os meus pais. Pelo menos, são pessoas que eu conheço", conta Marcelo, que, apesar da "relação muito boa" com os pais, continua à procura de alternativa. A única que vê é o teletrabalho: construir uma rede de alunos que lhe permita dar aulas online e sair de Lisboa. Para Tiago, a partilha de casas com desconhecidos começa a ser "uma possibilidade" que coloca em cima da mesa, mas, com "quartos arrendados a 400 euros", também não consegue comprometer-se com essa alternativa.
Com o agravamento deste cenário, e sem sinais de uma descida dos preços para breve, também a contestação social está a crescer. Para além das várias manifestações – ainda este sábado, decorreu em Lisboa uma manifestação organizada pelo Movimento Vida Justa, contra a subida do custo de vida; para 1 de Abril, está marcada nova manifestação, organizada pelo movimento cívico Casa é Um Direito –, há ainda iniciativas políticas vindas de movimentos populares. É o caso da petição "Pela Protecção do Direito à Habitação", que está a poucas assinaturas de reunir as 7500 necessárias para que seja apreciada pela Assembleia da República.
Entre os promotores desta petição está Rafael Pinheiro, que também foi forçado a voltar para casa dos pais, uma decisão que tomou depois de um período em que suportou uma renda de 500 euros enquanto ganhava "muito ligeiramente" acima do salário mínimo, a trabalhar numa "consultora com uma grande reputação", onde fazia horas extraordinárias não pagas.
Sem perspectivas de ver o salário aumentado e sem "encontrar significado no trabalho", o investigador e doutorando em Ciências da Comunicação, hoje com 30 anos, entrou em burnout. "A dada altura, deixei de aguentar e tive de desistir de tudo". Voltou para casa dos pais, mas a "hecatombe" continuou, depois de o proprietário da casa arrendada pelos pais ter vendido esse imóvel a uma empresa de investimento imobiliário, violando o direito de preferência dos inquilinos previsto por lei.
Desde o início desse processo de venda que a ameaça de despejo tem sido uma constante. Primeiro, por parte do anterior proprietário, que tentava visitar a casa acompanhado por agentes imobiliários, sem autorização dos inquilinos que lá viviam. Depois, pelos novos donos da casa, que insistem que, com a mudança de propriedade, o contrato de arrendamento cessa (o que não é verdade), para além de voltarem a tentar fazer visitas à casa, com o objectivo de vendê-la novamente.
Foi a revolta pela situação em que os pais se viram que levou Rafael a tornar-se activo na luta pelo direito à habitação. A petição que lançou com "um pequeno grupo de jovens trabalhadores e estudantes precários" já conta com cerca de 6500 assinaturas e propõe uma série de medidas para garantir o acesso à habitação, incluindo a implementação de limites máximos aos valores de renda ou a conversão de imóveis desocupados há mais de cinco anos em habitação pública com rendas acessíveis.
Sabemos que a petição não vai resolver todos os problemas e que, provavelmente, não vai haver uma resposta apropriada por parte do sistema político. A não ser, claro está, que haja mobilização social Rafael
"Sabemos que a petição não vai resolver todos os problemas e que, provavelmente, não vai haver uma resposta apropriada por parte do sistema político. A não ser, claro está, que haja mobilização social. É isso que esta iniciativa pretende", resume.
Sem alternativas, vivem "no limbo" com os ex-companheiros
"Imagine uma fila de supermercado no pico da pandemia." Foi este o cenário com que Helena (nome fictício) se deparou numa das várias visitas a casas para arrendar que tem feito no último ano, desde que se separou do marido. Dessa vez, preparava-se para ver um T3 "muito bonito e bem conservado" na zona dos Anjos, em Lisboa, pelo qual os proprietários começaram por pedir uma renda de 1500 euros, que, semanas depois, aumentou para 2000 euros. Com Helena, estavam dezenas de outras pessoas que enchiam a rua, à espera de entrar.
Era um modelo de "casa aberta", prática que se tornou comum entre senhorios que procuram inquilinos em Lisboa, tal é a escassez de oferta na capital. "A cada 15 minutos, subia uma fornada de pessoas. À porta, havia uns papéis onde cada candidato escrevia a idade, nacionalidade, proposta de renda e o porquê de dever ser escolhido, como se fosse uma entrevista de emprego", conta a psicóloga de 35 anos, que continua a viver com o ex-marido, de quem se separou no ano passado, na casa que ambos compraram na zona de Cascais, há cerca de seis anos.
A cada 15 minutos, subia uma fornada de pessoas. À porta, havia uns papéis onde cada candidato escrevia a idade, nacionalidade, proposta de renda e o porquê de dever ser escolhido, como se fosse uma entrevista de emprego Helena
Foi a solução possível numa cidade onde suportar sozinha os custos de uma casa se tornou uma tarefa incomportável para muitos, sobretudo mais jovens, mesmo quando recebem acima da média. Os últimos dados oficiais, relativos aos Censos de 2021, evidenciam bem essa dificuldade: na Área Metropolitana de Lisboa, a população entre os 20 e os 40 anos que vive sozinha reduziu-se em 26% entre 2011 e 2021. Olhando só para a cidade de Lisboa, o número total de alojamentos onde vive apenas uma pessoa, independentemente do escalão etário, diminuiu em 0,3% nessa década, uma excepção à regra a nível nacional.
Quando, finalmente, conseguir sair da casa que ainda partilha com o ex-marido, Helena não se vai juntar a estes números. "Vou dividir casa com amigos, não é possível ter casa sozinha", resume. Mas, até lá, prepara-se para aguentar por mais tempo a situação "excruciante" que a obrigou a procurar ajuda psicológica, pela "ansiedade terrível" que causou. Porque, acredita, vive "no limbo", ou num "meio-luto", do qual procura fugir ao dormir em casas de amigos ou gastando o "dinheiro absolutamente todo" em psicoterapia e actividades como aulas de cerâmica. A "sorte", diz, é não ter tido filhos com o ex-marido, uma "angústia" que nem quer imaginar.
Clara (nome fictício) não teve essa sorte. Aos 32 anos e a trabalhar num call center há mais de uma década, altura em que foi viver para Lisboa, terminou a relação com o pai dos seus dois filhos menores no ano passado, ao fim de 13 anos de união de facto. Sem família por perto e a receber 650 euros ao fim do mês, nem sequer se dá ao trabalho de visitar casas, por não encontrar nenhuma que pudesse pagar ao mesmo tempo que sustenta os filhos.
Terminei a minha relação em Abril de 2022. Desde então, continuo a viver com a mesma pessoa, os dois em teletrabalho, ou seja, são 24 sobre 24 horas Clara
E, assim, continua a partilhar casa com uma pessoa que descreve como "temperamental" e que se recusa a procurar outra casa. "Terminei a minha relação em Abril de 2022. Desde então, continuo a viver com a mesma pessoa, os dois em teletrabalho, ou seja, são 24 sobre 24 horas. Ele insiste em viver aqui, eu que saia, já que fui eu a terminar a relação", conta, enquanto explica que a procura por apoios públicos também falha, não só porque é difícil de cumprir os critérios de acesso a estes apoios, mas porque as oportunidades são escassas.
A Câmara de Lisboa, por exemplo, promoveu 16 concursos para o programa municipal de renda acessível desde 2020; só no mais recente, terminado em Janeiro deste ano, foram submetidas 5297 candidaturas às 62 casas a concurso.
"Por esse preço, está quieta e cala-te"
Quando uma escalada de preços sem travão se conjuga com um parque habitacional insuficiente para dar resposta à procura e a uma inflação que faz encolher drasticamente os rendimentos disponíveis, casos como o regresso a casa dos pais ou a partilha de casa com desconhecidos deixam de ser os únicos a retratar uma crise habitacional. Para outros, que conseguiram até encontrar uma solução para viverem sozinhos, essa crise significa apenas a resignação a casas de que não gostam, em zonas que não escolheriam se tivessem alternativa. São independentes, mas com um custo. "Ter condições mínimas de habitação e independência leva-te tudo."
Se trabalhas em Lisboa, das duas, uma: ou arrendas uma casa que te permite ter folga para viver e levas três horas em deslocações diárias, ou arrendas uma casa perto do trabalho e comes arroz com salsichas o mês inteiro Sara
Para Sara (nome fictício), "tudo" significou abdicar de viver no concelho de Lisboa, onde trabalha, e encontrar casa em Setúbal, onde vive agora com o namorado. "Em casal, tudo fica mais suportável, excepto a distância. Se trabalhas em Lisboa, das duas, uma: ou arrendas uma casa que te permite ter folga para viver e levas três horas em deslocações diárias, ou arrendas uma casa perto do trabalho e comes arroz com salsichas o mês inteiro", diz a marketeer de 27 anos.
A opção pela primeira destas duas soluções foi feita ao fim de um ano de procura de casa em Lisboa, em que chegou a ver anunciado um duplex que era, na realidade, um T0 com "uma espécie de beliche por cima de um sofá". A sensação, admite, é a de que vive para trabalhar. "O tempo que demoramos na deslocação deixa-nos a pensar se vale a pena trabalhar em Lisboa, mas não há oportunidades perto de casa."
Para quem opta pela segunda daquelas soluções, o resultado também fica longe de ser satisfatório. Marta Rocha viveu por três anos na casa que, durante décadas, tinha sido arrendada pela avó, na zona de Alcântara, em Lisboa. Chegou a acordo com o senhorio para mudar o contrato de arrendamento para o seu nome, mantendo uma renda baixa, que seria actualizada anualmente, durante os três anos de contrato. Quando o contrato chegou ao fim, em 2020, a pandemia estava no pico e os despejos estavam suspensos graças ao travão imposto pelo Governo durante esse período. Mas a lei que impunha este travão estava a chegar ao fim da sua vigência e, antes de se saber que acabaria por ser prorrogada, o senhorio comunicou que não iria renovar o contrato e Marta viu-se obrigada a procurar nova casa.
Todos os dias, durante dois meses, passou a procurar nos portais imobiliários por casas com rendas até 500 euros. "Eram caves com janelas pequeninas ao nível do chão ou vãos de escada". Já estava "resignada" à ideia de que teria de voltar para casa dos pais quando encontrou o T1+1 onde vive agora, com uma renda de 525 euros, que teve o anúncio online por apenas quatro horas.
Mas, nesta altura, quando as coisas estão habitáveis, já batemos palmas. Toda a gente me diz o mesmo: por esse preço, está quieta e cala-te Marta
Conseguiu ficar onde queria, por um preço que consegue suportar, mas nem por isso a solução vem sem custos. "Todos os canos estão entupidos, não há isolamento, oiço tudo o que se passa no andar de baixo e a vizinha ouve tudo o que se passa em minha casa ", descreve. Mais recentemente, diz, tem pensado em sair e procurar outra casa. "Mas, nesta altura, quando as coisas estão habitáveis, já batemos palmas. Toda a gente me diz o mesmo: por esse preço, está quieta e cala-te."
E a dificuldade não está restringida aos grandes centros urbanos. Em zonas como o Algarve, por exemplo, o turismo de massas não só contribui para fazer aumentar os preços da habitação, como faz com que a já parca oferta se torne ainda mais escassa, já que muitos senhorios optam por colocar as casas a arrendar apenas durante a época baixa, para, durante o Verão, as arrendarem a turistas a preços mais elevados. Foi com este cenário que Teresa (nome fictício) se deparou durante "muitos meses", até conseguir encontrar aquela onde vive actualmente.
Em São Bartolomeu de Messines, a 20 quilómetros do sítio onde trabalha como administrativa, em Albufeira, o T1 renovado onde vive está "em bom estado", mas sobrelotado. "É uma casa mesmo muito pequena. Seria o ideal para uma pessoa, mas vivem três", conta Teresa, que, aos 32 anos, vive com a sua filha de cinco anos e com o namorado, com quem se juntou não porque queria, mas porque, a receber o salário mínimo, com uma renda de 400 euros e os custos com o combustível para chegar ao trabalho, não tinha alternativa.
"O dinheiro não me chegava e, muitas vezes, tinha de pedir ajuda aos meus pais. Fazia compras no supermercado com uma calculadora na mão. Se não fosse a situação precária em que estamos a viver, certamente, não dividia casa com ninguém", recorda.
Vai, assim, ficando resignada à situação em que se encontra, insatisfeita mas sabendo que, no contexto actual, aquilo que tem é raro. "Aqui no Algarve, há estúdios a mil euros, sem quaisquer condições, e ainda pedem caução de dois, três e quatro meses." Por isso, deixa-se estar. Ou, como resume Marta: "Vou vendo casas para arrendar, mas, normalmente, é mais para me rir."