9.2.23

Reabilitação chegou a 316 presos por violência doméstica. Três anos antes, tinham sido apenas 15

Anas Dias Cordeiro, in Público online

O Programa CONTIGO e o Programa para Agressores de Violência Doméstica são ambos estatais. Quando aplicados na comunidade, estão associados ao cumprimento de uma medida judicial.

A aplicação de programas para a reabilitação de agressores foi identificada como uma das cinco linhas orientadoras do Plano Nacional contra a Violência Doméstica de 2010. Durante a década que se seguiu, esses projectos tiveram contudo uma expressão muito reduzida e só nos últimos dois anos começaram a ganhar terreno dentro das prisões e no seio da comunidade.

Em Dezembro de 2022, o número dos reclusos abrangidos chegava aos 316 quando em 2019 tinham sido 15 apenas; em 2020, houve 95 participantes entre os condenados nas prisões e um ano depois (2021) esse número chegou aos 215. O salto foi identificado num período em que o universo de presos por este crime se manteve sem grandes alterações, entre os 808 (em 2019) e os 862 (em 2021) presos.

Medidas judiciais

Também na comunidade, esses programas ganharam expressão, segundo dados disponibilizados ao PÚBLICO pela Direcção-Geral das Reinserção e dos Serviços Prisionais (DGRSP) e outros indicadores constantes nos relatórios de actividades, o último dos quais relativo a 2021 e publicado no fim de Janeiro deste ano. Na comunidade, em 2019, havia 1977 participantes; passaram a ser 2762 no ano passado.

Os programas na comunidade destinam-se a dois tipos de pessoas: os acusados com suspensão provisória do processo, quando não há condenação, mas sim uma assunção da culpa e uma aceitação da vítima de que o processo não vá a julgamento; e os condenados, quando o crime foi dado como provado, a cumprir uma pena suspensa, fora da cadeia, havendo também aqui, em contrapartida, o compromisso (verificado pelos técnicos da Reinserção Social) de que o condenado cumpre as medidas decretadas pelo tribunal – entre as quais a frequência dos programas.

"A frequência dos programas faz parte das regras de conduta ou injunções associadas às medidas", explica Marta Capinha, psicóloga forense da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, a terminar um doutoramento sobre a Violência nas Relações da Intimidade. Na prática, o seu incumprimento pode levar a que o processo avance para julgamento (no primeiro caso) ou que a pena deixe de ser suspensa e passe a ser cumprida efectivamente na prisão, esclarece a investigadora do Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo Comportamental, ​naquela faculdade.

Medir a eficácia

Em Portugal, existem dois programas. O Programa CONTIGO é da responsabilidade do Governo Regional dos Açores, mas também aplicado na comarca de Cascais e na Madeira; e o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), da responsabilidade da DGRSP, que tem sido alargado a vários pontos do continente.
"Os estudos sobre a eficácia dos programas são ainda poucos e os seus resultados precisam de ser replicados" para consolidarem "a confiança nos bons indicadores encontrados"Marta Capinha - Investigadora da Universidade de Coimbra e ex-coordenadora do Programa CONTIGO nos Açores

A questão de saber se esta intervenção previne a reincidência ainda carece de uma resposta definitiva. É possível medir a sua eficácia?"Já foi feito. "Os estudos sobre a eficácia dos programas são ainda poucos e os seus resultados precisam de ser replicados" para consolidarem "a confiança nos bons indicadores encontrados", continua Marta Capinha que aqui se refere a "uma elevada adesão, cumprimento do programa e baixa reincidência". A psicóloga foi técnica coordenadora do CONTIGO nos Açores entre 2010 e 2015.

"Relativamente ao PAVD houve um estudo preliminar que falava em bons indicadores. Mais recentemente fizemos um estudo junto do Programa CONTIGO de 2009 a 2016, com 162 participantes que já tinham terminado a medida judicial, há pelo menos dois anos", explica a académica. Isto porque "a maior parte da reincidência aparece no ano seguinte, segundo a literatura especializada".

Deste, resultou uma reincidência de 15,4%, o que foi muito bem acolhido pela equipa de investigadores, entre os quais Marta Capinha, que também se congratula com a taxa de abandono de 8%, ao longo das 18 sessões, muito abaixo das taxas referidas na literatura internacional. Os outros 92% participantes estiveram em 100% das sessões. Este resultado para nós foi o que nos deixou mais satisfeitos. Não podemos, no entanto, concluir que este modelo previne a reincidência [mais do que outro a ser aplicado]", ressalva.

Os programas têm habitualmente grandes taxas de abandono, diz. "Mesmo em medidas supervisionadas pela Justiça, há pessoas que não conseguem ser motivadas para a intervenção, havendo mais de 50% de abandono nalgumas situações, de acordo com estudos internacionais sobre agressores em relações de intimidade. Às vezes "há uma adesão instrumental" porque a pessoa só participa para dar uma imagem de que está a tentar ou porque tenta atenuar algumas punições.
Resistência a tratar agressores

No passado, estudos académicos realizados fora de Portugal mostraram que o facto de não haver um levantamento empírico sobre a eficácia desses tratamentos deu azo a que movimentos feministas se opusessem às intervenções junto dos homens agressores. O argumento era que "tais intervenções não se coadunavam com os princípios feministas, além de representarem uma competição pelos recursos económicos existentes, já por si escassos", como refere um artigo académico publicado em 2012 por Marta Capinha e o professor Daniel Rijo, sobre a reabilitação dos agressores conjugais, publicado na Ousar Integrar: revista de reinserção social e prova, editada pela DGRSP.

Este tipo de oposição face à necessidade de reabilitar agressores será uma das razões pelas quais estes programas demoraram a ser desenvolvidos e implementados, concluíram então os autores.
Devemos alargar estes programas e dar resposta igualmente a situações em que as mulheres estão identificadas como agressoras em casais heterossexuais ou quando há violência entre casais não heterossexuais.Marta Capinha - Investigadora da Universidade de Coimbra e ex-coordenadora do Programa CONTIGO nos Açores

Dez anos passados sobre essa observação, a investigadora salienta que "os programas são uma forma de diminuirmos o risco para quem sofre de violência nas relações de intimidade" e que as respostas para as vítimas e para os agressores "têm que ser igualmente valorizadas e igualmente consideradas nesta luta que tem sido a tentativa de diminuirmos os números que continuam preocupantes".
Outras situações

E continua: "Estamos a falar de um fenómeno relacional, por isso temos sempre de ver as duas faces destas moedas independentemente dos papéis que elas assumam nas diferentes circunstâncias da vida delas. Cada vez mais nos confrontamos com a necessidade de alargarmos estes programas e de darmos resposta igualmente a situações em que as mulheres estão identificadas como agressoras em casais heterossexuais, ou quando há violência entre casais não heterossexuais."

"O facto de haver violência bidireccional aumenta o risco de escalada destas situações, e aumenta o risco para a pessoa que é mais vítima ou vítima das formas mais graves de violência, habitualmente as mulheres. Sabemos que há um maior risco para as mulheres de serem vítimas de formas graves de agressão física e de morrerem às mãos dos companheiros ou ex-companheiro." Não significa que a violência seja num só sentido, conclui.