Ana Mafalda Inácio, in DN
Elisa é médica italiana e chega a Portugal a falar quase corretamente a língua mãe para fazer estágio num dos Centros de Excelência da Rede Europeia de Reumatologia, no Hospital Santa Maria. Thaís, Letícia, Teófilo e Everton vieram do Brasil para aprofundar o conhecimento, a prática clínica e as técnicas usadas na Gastroenterologia do mesmo hospital. A referenciação internacional dos serviços e o renome dos profissionais levaram-nos a esta escolha.Sexta-feira. Início de tarde. Elisa Fiorentini, de 29 anos, médica italiana, despede-se do Serviço de Reumatologia do Hospital Santa Maria, em Lisboa. No dia seguinte, bem cedo, regressa a Itália e à sua unidade de origem, onde é médica interna, o Hospital Universitário Careggi, em Florença. Esteve cinco semanas na nossa capital a fazer estágio num dos centros certificados como de excelência na área reumatológica pela rede European Reference NetWork (ERN).
Elisa fala quase corretamente o português, língua que diz ter querido aprender quando, em 2017, veio fazer Erasmus ao nosso país, já durante o curso de medicina. Na altura, conta, escolheu ficar seis meses, "tinha medo de ficar mais tempo", confessa, de não se adaptar, era um novo país, um novo hospital, mas ao fim de um mês na Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa, já se tinha arrependido de não ter optado pelo período mais longo, um ano, "só que já não havia nada a fazer". Agora, no terceiro ano da especialidade, optou de novo por Portugal. Candidatou-se a um estágio da rede ERN e conseguiu, mais uma vez, "foi muito pouco tempo", comenta a rir. "Tenho muita pena de me ir embora amanhã".
Num dos antigos anfiteatros da Faculdade de Medicina de Lisboa, no Hospital Santa Maria, Elisa conhece outros médicos internos, Thaís, Letícia, Teófilo e Everton, acabados de chegar de Belo Horizonte, no Brasil, para um estágio no serviço de Gastroenterologia, e com o qual completam os dois anos de "residência em clínica médica", uma espécie de internato em clínica geral. Só depois deste concluído, poderão fazer nova prova para escolherem a especialidade a exercer no futuro.
Elisa está de partida, mas não descarta a possibilidade de voltar, um dia. "Este projeto termina aqui, mas nunca digo que não. Desde a minha experiência no Erasmus que aprendi a perder o medo de algo que não conheço. Na altura, tive uma boa experiência. E agora também. Fui muito bem recebida".
Os outros colegas médicos estão a iniciar a formação, mas ao fim de três dias já questionam se "o Revalida será muito difícil" - ou seja, a equivalência dos seus cursos de Medicina em Portugal. Os cinco são exemplos de muitos outros internos que, nesta altura do ano, chegam ao Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte para fazer formação em vários serviços.
A modalidade não é nova, uns vêm ao abrigo de organizações internacionais, como o caso da European Reference NetWork, outros chegam através de protocolos e parcerias diretas com serviços de hospitais estrangeiros. Mas a escolha cabe a cada um e todos concordam que o mais importante neste tipo de formação é ser feita num serviço com "referenciação internacional" e com "profissionais de renome".
No caso dos médicos brasileiros, todos vieram sem ser ao abrigo de acordos entre hospitais. "Pesquisámos o serviço de gastro de Santa Maria, porque é muito completo, além da enfermaria tem também a componente de procedimentos técnicos, exames, e no Brasil estes raramente são feitos pelos gastrenterologistas, e isso é muito importante para nós", explicam-nos.
Como também é importante poder concretizar o objetivo de experienciar a prática da medicina num país diferente. "Cada vez mais, o conhecimento não pode ser restrito, sobretudo para os jovens médicos. A teoria é a mesma para todos o que se formam em Medicina, mas a prática é diferente e é isso que queremos ver aqui", argumenta Everton Rodrigues.
Ao fim de cinco semanas, Elisa Fiorentini fala da sua experiência e confessa: "Levo muita coisa daqui". Se na altura do Eramus foi incentivada a sair de Itália por duas amigas, que estavam determinadas a entrar neste programa e que a levaram a pensar: "O que faço? Fico sozinha aqui, ou arrisco também", tendo decidido arriscar. Agora, também foi incentivada pela chefe do seu serviço a sair e a aprofundar o conhecimento.
"Queria um serviço de reconhecimento internacional com conhecimento em doenças raras, porque a reumatologia tem muitas doenças raras e cada centro centro tem os seus doentes. Por exemplo, o centro de reumatologia do meu hospital trata muitas doenças, mas está muito focado na esclerose sistémica, e eu queria estar num centro maior para pode observar outras doenças e a forma de lidar com elas, e o serviço de Santa Maria tinha isso", explica.
A médica italiana assume que uma das coisas mais importantes que observou no serviço português foram as consultas multidisciplinares. "Tem muitas. As doenças de reumatologia não têm só a ver com articulações, têm a ver com muitas outras, até do tipo autoimune, e as consultas multidisciplinares acabam por ser muito importantes para se ter uma visão global do doente, a visão de outros especialistas. Às vezes, só quando olhas para um problema de vários ângulos é que percebes qual é a solução. Se não for assim, cada especialista só vê a sua pequena parte e isso não permite, nem um bom diagnóstico nem uma boa gestão da doença", argumenta.
Elisa diz mesmo que este foi o primeiro objetivo que a trouxe aqui. Por isso, reforça satisfeita, "levo muita coisa. Mais conhecimento sobre algumas doenças, que no meu hospital vejo menos, e sobretudo o ter percebido quando é necessário o apoio de outro especialista e o saber pedir ajuda quando o teu conhecimento já não chega. Isto é algo que todos os médicos deveriam experienciar e fazer, porque cada vez mais ninguém consegue saber tudo sobre cada doença".
Outra coisa que não vai descurar "é que sei que este centro funciona desta maneira e se no futuro precisar de algum conselho também sei que posso contar com as pessoas e com o intercâmbio de informação, conhecimento e experiência".
"Cada vez mais, o conhecimento não pode ser restrito, sobretudo para os jovens médicos. A teoria é a mesma para todos o que se formam em Medicina, mas a prática é diferente e é isso que queremos ver aqui".
Os colegas brasileiros concordam, dizendo mesmo que este foi também um dos motivos que os trouxe para um serviço hospitalar fora do Brasil. Thaís Costa, de 27 anos, formada na PUC de Minas Gerais, Pontifícia Universidade Católica, já tem a certeza de que "gastroenterologia é sua especialidade. Letícia Martins, de 28 anos, formada na Faculdade de Medicina de Barbacena, também uma cidade de Minas Gerais, está na dúvida. "Na verdade, eu tinha para mim que era gastro que queria fazer, mas depois durante a residência comecei a perceber que o que mais gosto é do cuidar, de lidar e comunicar com o doente, e tenho estado a pensar na especialidade de geriatria. Sei que em Portugal não é uma especialidade, mas no Brasil é e há muitos médicos", mas isso não a impediu de querer vir conhecer na área de gastro o que diz ser "a prática de outra medicina".
Ambas exercem no mesmo hospital público, Santa Casa da Misericórdia de Belo Horizonte, e ambas reconhecem que foram muito incentivadas pelo "chefe para fazer este mês optativo no fim da residência fora do país. Ele sempre nos diz que é muito importante termos experiências com outras medicinas, para vermos o que se faz de diferente. Ficámos a saber que o serviço de Santa Maria é muito forte nesta área e candidatámo-nos ao estágio, enviando currículo e carta de motivação e conseguimos", refere Letícia. Para Thaís, um dos aspetos que a levou a escolher o serviço de Santa Maria foi o facto de o seu diretor, Rui Tato Marinho (agora diretor clínico do hospital) ser um especialista em hepatites e o facto de ser um serviço muito completo, com "enfermarias e unidades de exames, procedimentos endoscópios".
Muitas horas de trabalho é queixa no Brasil, Itália e em Portugal
Ao fim de três dias, Thaís diz que o que mais a impressionou foi os internos do serviço poderem lidar com as técnicas de exames (endoscopia e colonoscopia), desde o primeiro ano da especialidade. "Aprendem logo todo o tipo de procedimento, no Brasil não é assim. Quando entramos na especialidade, fazemos dois anos, mas se quisermos fazer procedimentos técnicos temos de fazer mais dois anos, porque é outra especialidade". Letícia concorda que esta é uma das grandes diferenças em relação à formação específica no seu país. "O que já percebemos é que, aqui, os procedimentos ou os exames ficam muito restritos aos médicos de gastro. Lá, um cirurgião geral pode fazer os dois anos de endoscopia e virar endoscopista. É uma especialidade à parte".
Mas há mais. Thaís destaca que, "apesar da rotina de enfermaria ser bem parecida com a nossa, os internos não ficam só com o trabalho de enfermaria, circulam muito. Vão para a consulta, fazem a urgência e também procedimentos técnicos. É um trabalho mais variado". Para já, a ideia com que ficam "é que cá há mais qualidade de vida para os médicos e que a forma de pensar é diferente. No Brasil, não nos podemos queixar de desemprego médico, mas o nosso trabalho é mais desvalorizado e a quantidade de horas de trabalho é muito maior". Os cinco riem-se, porque esta é uma das queixas em todo lado. Tanto no Brasil, como em Portugal ou em Itália, "também somos muito parecidos", diz Elisa.
Teófilo Bom Conselho é o mais jovem de todos. Tem 25 anos, o ser médico sempre foi um sonho de criança, apesar de na família não haver um único médico. "Desde que me lembro que dizia que queria ser médico. Foi um caminho muito difícil, muita preparação, porque medicina é dos cursos mais concorridos e com notas mais altas para se entrar na faculdade. Entrei com 17 anos. Fiz os seis anos de curso e formei-me em 2020. No início de 2021, comecei a residência médica, que acabo no final de fevereiro".
Depois, o seu caminho será ir para São Paulo, onde quer fazer a especialidade gastro, sobre a qual também não tem dúvidas. "É o que quero. Ficou muito bem definido para mim na residência, porque no início cardiologia também era uma opção", confessando ainda que a sua vinda a Portugal também foi incentivada pelo colega Everton. "Eu tinha tudo preparado para fazer este estágio na Universidade de São Paulo, é uma das melhores do Brasil, mas o Everton conseguiu o estágio aqui e acabou incentivando a candidatar-me. E vim, não podia perder a oportunidade de conhecer uma medicina diferente".
Teófilo e Everton trabalham ambos no Hospital Metropolitano Dr. Célio Castro, em Belo Horizonte, uma unidade muito recente, construída em 2015 propositadamente para "dar resposta à população com acesso ao serviço público". Everton explica que "é um hospital diferente de todos os outros hospitais públicos de Belo Horizonte". Isto porque "é uma Parceria Público Privada, é um hospital público gerido pelo privado e então tem uma incrível estrutura e a funcionalidade é enorme. A resposta é muita rápida e muito fluida", mas é um hospital centrado na área da "Medicina Interna, Cirurgia Geral, Medicina Intensiva e Neurologia. Não tem gastro e também vou ter de sair". O seu futuro também irá passar por outro hospital e por outra cidade, certamente São Paulo.
Mas os dois confessam que vão de "cabeça aberta". Teófilo diz que vai a pensar mais na área da hepatologia, mas a olhar também para a opção de imagiologia, sabendo, à partida, que o que dá mais dinheiro é esta última, embora, diga, "a hepatologia também pode dar, se conseguir entrar numa equipa de transplante".
Everton, de 26 anos, diz gostar "mais da parte de Imagiologia, dos procedimentos, mas também sou apaixonado pela parte clínica, gosto de lidar com as pessoas, mas estou 60% inclinado para a imagem e 40% para a clínica". O ser médico "também faz parte dos primórdios da minha existência, embora fosse também uma coisa distante, porque na minha família não há um único médico, eu sou o primeiro. Sempre gostei de pessoas, sinto-me bem a cuidar e não me veria a fazer outra coisa". Para Everton, o sair do Brasil após a especialidade também é uma opção. "Estou tão encantado que não teria nenhum impedimento de voltar e tentar o revalida, poder começar a emigrar aos poucos".
Para os cinco jovens médicos, o conhecimento em medicina é universal e todos defendem que "o valor da vida é igual para todos". Por isso, "todas deveriam ter acesso aos cuidados de saúde da mesma forma. Um doente é um doente, a doença não é diferente porque é pobre ou rico", sustenta Elisa, argumentando que para ela, em termos de futuro, o mais importante seria os Estados investirem mais em cuidados de saúde no sistema público. "Em Itália, como em Portugal a parte privada da saúde está a ganhar tanta força como a parte pública e, assim, a Saúde já não é acessível para todos da mesma maneira".
No futuro, Teófilo diz que gostaria que a Saúde fosse mais valorizada no Brasil. "A teoria é muito boa, mas na pratica falta muita coisa, falta de investimento a todos os níveis, municipal, distrital, estadual". Para Everton, há duas coisas que fariam a diferença, "uma é que os recursos da saúde fossem destinados mais à prevenção do que ao tratamento da doença, a outra é que, independentemente de todo o desenvolvimento tecnológico, não se perca a arte de cuidar com a mão, de lidar com as pessoas".
Por cá, internos não quiseram preencher 161 vagas
Em 2022, foram lançadas 2057 vagas para o internato em especialidades, a começar em 2023. Foi o maior número de sempre, referiu o Ministério da Saúde, mas este aumento também registou o maior número de sempre de vagas por preencher, 161. A esmagadora maioria em unidades da Grande Lisboa, 103. Destas, 90 da carreira hospitalar e 71 dos cuidados primários. Do total de candidatos a concurso, 438 recusaram qualquer uma das vagas. As especialidades mais atingidas foram Medicina Interna, Medicina Geral e Familiar, Farmacologia Clínica, Imunohemoterapia, Patologia Clínica e Saúde Pública. O Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte recebeu em janeiro 210 médicos internos, 95 para fazer uma especialidade e 115 para formação geral.