Juízes do TC foram questionados em 2022 por uma empresa pública sobre se administradores têm de declarar rendimentos quando as funções são não executivas. Decisão foi tomada agora: estão obrigados.
O Parlamento aprovou em Junho de 2019 o novo regime de controlo dos rendimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, mas as novas regras não ficaram claras. No ano passado, cerca de três anos depois de as regras estarem em vigor, o Tribunal Constitucional (TC) foi chamado a pronunciar-se sobre se dois gestores públicos de uma empresa detida pelo Estado seriam obrigados a entregar declaração de rendimentos no Palácio Ratton, visto que ambos os administradores exerciam cargos não executivos. O TC decidiu este mês: os juízes consideraram que tanto os administradores executivos como os não executivos têm esta obrigação de reporte e deixam uma crítica implícita aos deputados ao assinalar a falta de "sentido útil" de uma expressão colocada na lei durante o debate parlamentar.
A história está contada num acórdão publicado no site do Tribunal Constitucional e que se refere a uma decisão dos juízes com data de 11 de Julho deste ano. A 3 de Maio de 2022, o TC recebeu um email do presidente e de uma vogal executiva do conselho de administração de uma empresa pública a suscitar uma dúvida: "A de saber se os gestores públicos que exerçam funções não executivas se encontram sujeitos às obrigações emergentes da Lei n.º 52/2019, de 31 de Julho", e, nomeadamente, se lhes é aplicável a obrigatoriedade de envio ao Tribunal Constitucional da declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos.
Em causa estão dois administradores não executivos – não identificados no acórdão, bem como a empresa pública cujo nome não aparece mencionado – que tinham cessado funções na dita empresa a 30 de Abril de 2022 e que tinham começado funções a 24 de Outubro de 2019 e 14 de Novembro de 2019. As declarações foram entregues no TC tanto à entrada como à saída de funções, mas ambos concordaram que a empresa esclarecesse a dúvida junto do TC. O acórdão revela que à data dos autos ainda não tinham sido designados administradores não executivos para o conselho de administração daquela empresa.
Uma lei com um elemento inútil
No acórdão percebe-se que na origem da dúvida está uma expressão colocada na Lei 52/2019 que não terá sido clara para o conselho de administração. Isto porque a lei fixa também obrigações declarativas para os gestores públicos, além dos políticos, mas a formulação com que o faz gerou incertezas. Segundo a lei, "são considerados titulares de altos cargos públicos" – sujeitos, portanto, ao regime jurídico plasmado na Lei n.º 52/2019, de 31 de Julho – "a) gestores públicos e membros de órgão de administração de sociedade anónima de capitais públicos, que exerçam funções executivas".
"Como se vê, esta disposição legal estabeleceu, pelo menos literalmente, uma bipartição entre "gestores públicos" e "membros de órgãos de administração de sociedade anónima de capitais públicos", aditando, depois, um inciso final com alcance excludente do âmbito de aplicação da Lei n.º 52/2019, na medida em que faz depender tal aplicação do desempenho de funções executivas", lê-se no acórdão. Traduzindo: ao acrescentar a expressão "funções executivas", o legislador pareceu delimitar o tipo de funções a que se aplicava a lei e excluir outras (as não executivas).
"Sucede que, quer pela sua formulação literal, quer pelo seu posicionamento no final da alínea ora em apreço, não é claro se esse inciso respeita também aos "gestores públicos" ou apenas aos "membros de órgãos de administração de sociedade anónima de capitais públicos", explicam os juízes, acrescentando que também não é claro em que grupo se inserem os administradores não executivos – se nos gestores públicos ou nos membros de órgãos de administração de sociedade anónima de capitais públicos. E concluem: "A dúvida suscitada afigura-se, portanto, inegavelmente pertinente e de significativo alcance prático, dependendo do seu cabal esclarecimento a delimitação do âmbito subjectivo de aplicação da Lei n.º 52/2019 adentro do sector empresarial público."
Recorrendo ao historial da lei sobre controlo de rendimentos dos políticos e dos altos titulares de cargos públicos, bem como à necessidade de preservar o "princípio da igualdade" de tratamento entre empresas públicas do Estado e empresas públicas regionais ou locais, os juízes lembram que as alterações a esta legislação têm sido "sempre no sentido da extensão ou alargamento do âmbito subjectivo" das obrigações declarativas.
Os juízes consideram que, no caso concreto, "os respectivos administradores são, para todos os efeitos, havidos como gestores públicos", "sendo o inciso" contido na lei "desprovido de sentido útil". Ou seja: acrescentar a expressão "funções executivas" criou confusão na interpretação em vez de ajudar a esclarecer.
"Consequentemente, todos os administradores da A. [tal como foi designada a empresa para manter o anonimato] estão obrigados ao cumprimento da Lei n.º 52/2019, independentemente de exercerem funções executivas ou não executivas", escrevem os juízes do TC. Assim, "todos os membros do conselho de administração da A. se encontram sujeitos ao dever de apresentação de declaração única de rendimentos, património, interesses, incompatibilidades e impedimentos, bem como às demais obrigações declarativas, na qualidade de gestores públicos".
A leitura do acórdão permite ainda perceber que, embora os juízes tenham decidido pela obrigatoriedade da entrega das declarações por parte dos administradores não executivos, o Ministério Público a funcionar junto do TC manifestou opinião diferente, considerando que aqueles gestores não executivos "não estão vinculados" às obrigações declarativas contidas na lei.
Esta decisão do TC aplica-se a este caso, não sendo possível daqui retirar uma conclusão mais geral, já que, como deriva do acórdão, esta análise resulta de um "meio processual afim da acção de simples apreciação". Ou seja, trata-se de uma espécie de consulta da empresa ao Tribunal Constitucional que não tem força obrigatória geral, sendo uma decisão que se aplica apenas a este caso concreto.