Ana tentou inscrever o segundo filho em mais de 20 IPSS e creches privadas em várias zonas de Lisboa. Não conseguiu em nenhuma, as listas de espera eram enormes. Contactou inclusivamente a Segurança Social, mas a resposta foi simples e direta: “Não temos conhecimento de qualquer vaga no distrito de Lisboa.” Não conseguiu vaga para maio, obteve-a apenas para setembro, numa creche privada que aderiu à Creche Feliz, o programa do Governo para disponibilizar acesso gratuito às creches a crianças até aos três anos nascidas após 1 de setembro de 2021.
Rita começou a pré-inscrever o terceiro filho quando ainda estava grávida, no ano passado, mas não conseguiu um único lugar em Lisboa. “Preenchi dezenas de formulários, porque me diziam que os critérios para a gratuitidade iam mudando e que era necessário refazer o formulário”, recorda. “Não consegui vaga. Disseram-me para estar atenta à app Creche Feliz, mas aquilo estava sempre vazio — à exceção de uma ou duas opções fora de mão.” Resultado: esteve vários meses a trabalhar com o filho atrás.
Também João começou a procurar uma creche para a segunda filha meses antes de esta nascer. Como a creche do primeiro filho não tem berçário, precisava de encontrar uma solução provisória. Tentou meia dúzia de IPSS em várias zonas de Lisboa — ou mais, já lhes perdeu a conta —, algumas privadas, sem sucesso. A única IPSS que encontrou, reconhece, foi perto do trabalho e graças ao primo que tinha aí os filhos e falou com o diretor para lhe fazer um favor. Já Tomé, pai de cinco filhos, assevera ter sentido, pela primeira vez, “não uma dificuldade, mas uma incapacidade” em inscrever o quinto filho numa creche.
Tal como João, também ele tinha de encontrar uma alternativa para os primeiros meses, uma vez que a instituição onde é membro da direção e onde estão os outros filhos só aceita crianças a partir de um ano. Contactou IPSS e privadas, mas só conseguiu vaga para setembro, na creche dos outros filhos. Até lá, ele e a mulher — que têm alguma flexibilidade de horários ou opção de teletrabalho — dividiram os cuidados ao filho com a empregada, que assegura as manhãs.
Ana, Rita, João e Tomé são, a pedido dos próprios, nomes fictícios. Mas ilustram a dificuldade que existe para encontrar vaga numa creche na área metropolitana de Lisboa — uma realidade que alastra ao Porto e a outras zonas do país. “Senti este ano, num universo pequeno de privadas que contactei, mas sobretudo nas IPSS, os efeitos da falta de oferta que existe”, resume Tomé. “Já antes existiam listas de espera, mas não a este nível. A gratuitidade colocou ainda mais pressão sobre a rede de creches.”
Na IPSS em que é membro da direção, no centro de Lisboa, “a lista de espera é interminável”, e este ano não há uma única família nova a entrar. “Entrou tudo pelo critério dos irmãos e há dois casos de irmãos que não conseguiram”, detalha, acrescentando que esta é uma medida “perversa”, que se torna socialmente injusta. “Pessoas com capacidade financeira, que antes deixavam os filhos com a empregada, inscrevem-nos nas creches. E muitos daqueles que realmente precisam não têm sítio onde pôr os filhos.”
É também esta a visão de Luís Ribeiro, presidente da APEI — Associação de Profissionais de Educação de Infância, que critica o programa do Governo para a gratuitidade das creches, por considerar que este carece de “uma visão estratégica”. Uma vez que a taxa de cobertura da rede de creches é apenas ligeiramente superior a 50% das necessidades a nível nacional (e em Lisboa e no Porto rondará os 30%, na sua perceção), “todos os anos existem 127 mil crianças sem acesso à creche em Portugal”, das quais cerca de 70% estão em situação de vulnerabilidade — isto sem incluir os dados da imigração, que é “altíssima”.
Ainda assim, Portugal é o 7º país da UE em termos de taxa de cobertura (53%), acima da média europeia (32%). “Mas nós não vivemos em termos abstratos na Europa, vivemos em Portugal com as características do nosso país”, aponta Luís Ribeiro. “Ao alocarem-se recursos para as creches gratuitas, e não para a expansão da rede, deu-se maior benefício a quem já usufruía de uma resposta, esquecendo-se as crianças de famílias de estratos socioeconómicos mais desfavorecidos. Estamos a falar de 90 mil crianças para as quais é urgente terem acesso a respostas educativas nos primeiros anos de vida e não têm. E criou-se uma pressão adicional sobre as creches.” Já os dados partilhados com o Expresso pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social são inferiores e apontam para 40 mil crianças nesta faixa etária em situação de pobreza em 2022, das quais mais de metade a frequentar uma creche.
A verdade é que Portugal já era, antes da gratuitidade ser implementada, um dos países em que, proporcionalmente, mais famílias procuravam creches. Em 2021, e segundo o Eurostat, mais de metade das crianças portuguesas até aos três anos recebia educação formal (acima da média europeia) e apenas 21,7% ficavam em casa com os pais. Para Susana Batista, presidente da ACPEEP — Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular, isto explica-se com a falta de apoio do Estado português “para as mães poderem ficar em casa com as crianças depois dos cinco meses” — embora o Governo tenha recentemente aumentado o subsídio parental inicial e o subsídio parental alargado para, respetivamente, 90% e 40% da remuneração do trabalhador.
Já Luís Ribeiro realça que o facto de as famílias serem, há muitos anos, nucleares e de os pais trabalharem, obriga-os a procurarem uma solução para deixar os filhos durante o dia. Além disso, “a consciência cada vez mais generalizada da importância da educação nos primeiros anos de vida” também pesa. Não só para as crianças mais vulneráveis — que, por viverem em contextos mais desfavorecidos e com níveis de escolaridade muito baixos, torna-se “premente” terem “outras oportunidades, estímulos e experiências de aprendizagem” —, mas também para as outras. “Os pais, muitas vezes, estão fora de casa a trabalhar. E as experiências de aprendizagem a que as crianças estão sujeitas quando trabalham com um profissional altamente qualificado fazem toda a diferença”, defende, acrescentando que Portugal é, a par da Islândia, o único país em que os educadores de infância necessitam de ter um mestrado para poderem exercer a sua profissão.
Atualmente, está até em curso um reforço da capacidade em 26 mil lugares em creche, 16 mil dos quais já aprovados, no âmbito do programa PARES e do Plano de Recuperação e Resiliência, adianta fonte oficial da tutela. E o Governo anunciou recentemente medidas para aumentar a capacidade das creches já em 2023, entre elas o aumento de duas crianças por sala, desde que as salas tenham dimensão para isso, e a simplificação da reconversão automática de espaços para salas de creche.
Mas a primeira medida já mereceu críticas da APEI, que considera que se está a aumentar o rácio de crianças por adulto, “um dos mais elevados da Europa”, com uma medida “avulsa” que apenas dá resposta a seis mil vagas — ao contrário da ACPEEP, que acredita que este é um mal menor, tendo em conta o atual “desespero das famílias”, embora reconheça que pode diminuir a qualidade da educação se não forem alocados mais recursos humanos. Para a APEI, a única forma da rede de creches crescer é através das autarquias. “A maioria das IPSS vive com enormes dificuldades. Algumas até podem expandir com uma sala, mas é residual”, garante Luís Ribeiro, que coordenou durante oito anos a expansão da rede do pré-escolar no Alentejo. “A única forma simples e rápida de implementar é através da rede municipal, tal como aconteceu no pré-escolar.
As autarquias, embora não recebessem qualquer apoio do Estado, percebiam a importância da educação para as crianças e para o município e tinham forma de afetar fundos do seu orçamento para a expansão da rede.” Susana Batista, por sua vez, considera que não faz sentido o Governo não envolver todos os sectores (IPSS, autarquias, creches privadas), se todos aceitam as mesmas condições. “Se o Estado alargasse o programa de financiamento para construção de creches a todos os sectores e não apenas às IPSS, conseguiríamos construir muito mais creches em pouco tempo e o Estado não teria que gastar tanto dinheiro, porque haveria um cofinanciamento / coinvestimento das empresas privadas. E isso garantiria a sustentabilidade de todas as creches em Portugal, maior equilíbrio social, mais receitas de impostos para o Estado (porque as IPSS não pagam impostos), mais qualidade de todas as creches e maior diversidade das respostas sociais em Portugal.”