Com exposição no espaço Hangar, em Lisboa, duo britânico continua a interrogar a imagem da descolonização e a libertar o imaginário do horizonte imperial do capitalismo.
A Sphere of Water Orbiting a Star (2023) é o título da exposição que o duo e casal britânico The Otolith Group apresenta, até 23 de Setembro, no espaço lisboeta de artes Hangar, com curadoria de Margarida Mendes. Não é a primeira vez que Kodwo Eshun e Anjalika Sagar, que desde 2002 assinam com o nome Otolith Group, expõem em Portugal – recorde-se, por exemplo, a individual realizada em 2015 no Museu de Serralves –, mas há dois elementos que tornam singular este A Sphere of Water Orbiting a Star: trata-se da primeira individual em Lisboa e consiste numa reflexão poética e radical sobre o racismo, o capitalismo e a descolonização.
Há duas décadas que Kodwo Eshun e Anjalika Sagar, activistas, artistas, críticos e teóricos, fazem da arte contemporânea um campo de investigação e produção baseada na imagem em movimento, na ficção e na crítica. É neste quadro que surgem as referências ao fascinante mundo subaquático conhecido como Drexciya, criado pelo homónimo duo de música tecno. Antes de darmos a palavra à dupla, vale a pena descrever a instalação que dá o nome à exposição.
Na sala do espaço Hangar, no bairro da Graça, estão dois ecrãs. No da esquerda, vemos imagens de vagas marítimas de um azul escuro, quase enegrecido, sob o qual julgamos ouvir algo mais do que o marulhar das ondas. No da direita, ouvimos uma conversa entre Kodwo Eshun e Remnant of a Hydrogen Element (pseudónimo de Gerald Donald, uma das metades dos Drexciya). Falam devagar sobre um fantástico mundo subaquático, mas é Eshun quem faz as perguntas: o artista quer conhecer esse universo ficcional que, em termos temporais e espaciais, não parece assim tão fantástico ou distante. Palavras como tráfico, escravos, mulheres e crianças negras lançadas vivas ou mortas ao oceano vão assomando da conversa, enquanto, do outro lado, a água continua a cair.
Outros mundos, com a ficção sónica
A exposição que o Otolith Group traz a Lisboa está em diálogo permanente com a história e o trabalho do duo de Detroit formado por James Stinson e Gerald Donald. No vídeo, a relação com o imaginário e a música dos Drexciya (embora não a oiçamos) é central ao tema de trabalho. “Kodwo foi o primeiro crítico a escrever um ensaio sobre o universo estético, político e musical dos Drexciya”, revela-nos Anjalika Sagar. “Publicou um ensaio na [revista de música] The Wire e dedicou-lhes vários textos no seu livro More Brilliant Than the Sun: Adventures in Sonic Fiction [1998].”
A morte rodeia a vida negra na América, sempre rodeou. E a música dos Drexciya tratava de criar impulsos, ritmos, energias, fluxos que não objectificavam as pessoas negras. Não eram afro-futuristas, mas afro-pessimistas que tentavam criar um mundo abstracto a partir do qual pudessem imaginar, conceber e realizar outro tipo de vida
Anjalika Sagar
O interesse do artista levá-lo-ia, em 2010, a Detroit, para conhecer o membro sobrevivente dos Drexciya. “O James Stinson morrera em 2002 e fui à cidade”, conta-nos agora. “Entrevistei o Gerald Donald durante três ou quatro dias e usámos algum desse material no vídeo Hyrda Decapita [pode ser visto às quintas-feiras, às 19h, no Hangar]. Agora regressámos a essa entrevista e aos Drexciya e fizemos um novo trabalho sonoro com o compositor e designer de som Taylor Friedman. Não trouxemos o som tecno dos Drexciya de volta, mas, se quiser, a sua ficção sónica, sonora, científica. Aquilo que consideramos ser a construção ou criação de mundos que os Drexciya nos deixaram.”
The Otolith Group em Lisboa: “As pessoas negras construíram a Europa”
No Hangar, os visitantes podem consultar uma selecção de discos do duo musical, bem como imagens, textos teóricos e ficcionais que contextualizam a exposição e a relação entre o Otolith Group e os Drexciya. “Podemos dizer que fomos inspirados por eles”, admite Kodwo Eshun. “Movemo-nos no mundo da arte, da teoria e do discurso e, de certa maneira, apropriamo-nos de ideias, de pensamentos de que gostamos. Gerald Donald é muito bom a construir mundos ficcionais a partir das ideias contidas nas suas canções. De cada título, ele extrapola para um sistema cósmico, com outras condições planetárias, um mundo subaquático diferente do terrestre. É como um escritor de ficção científica ou ficção especulativa. É único nisso, porque o faz a partir da música. Uso muito o termo ficção sónica para designar o trabalho dele, pois consegue reunir a uma organização do som a própria ficção científica.”
Som, há som na Hangar, mas – e já o dissemos antes – não o da música tecno. Aproveitamos o passado de Kodwo Eshun enquanto crítico musical para lhe perguntar: o que o atrai no tecno? "Agradam-me os seus aspectos impopulares”, responde. “Enquanto a cultura popular gira à volta do hip-hop, o tecno permanece uma cultura impopular. Por exemplo, não é muito popular no top 40 ou no interior dos Estados Unidos, não está na imprensa, não vemos músicos [do tecno] a comentarem os seus discos. É uma cultura local e intensa que, mediante o seu poder electrónico, cria veículos para a imaginação de mundos.”
Mas que mundo são esses? E, sendo especulativos, o que nos podem dizer de certas realidades históricas? “Há outro pano de fundo para este trabalho que é o capitalismo racial, o modo como o racismo é subjacente a todas as formas de capitalismo”, comenta Anjalika Sagar. “Os Drexciya vieram de Detroit, onde imaginaram um mundo com a sua música abstracta, uma música que resistia, pela sua estética, à música que objectificava as pessoas negras. Do fundo das vidas negras, através das narrativas que produziam nos seus álbuns conceptuais, inventaram um mundo diferente. Ressoava na música que fizeram uma forma estética resistente à captura pelo capitalismo. A morte rodeia a vida negra na América, sempre rodeou. E a música dos Drexciya tratava de criar impulsos, ritmos, energias, fluxos que não objectificavam as pessoas negras. Não eram afro-futuristas, mas afro-pessimistas que tentavam criar um mundo abstracto a partir do qual pudessem imaginar, conceber e realizar outro tipo de vida.”
Uma vida contra e longe do terror e da violência do imperialismo e do colonialismo. Nas palavras de Margarida Mendes, que podemos ler na folha de sala, essa vida seria a de uma civilização subaquática na qual os rexciyans mutantes respirariam água: “Nascidos das escravas africanas que seguiam a bordo de navios negreiros em direcção à América e que foram lançadas ao mar, esses novos seres propunham uma alternativa a um modo de vida sequestrado.”
Uma descolonização total exige a revolução de todas as formas de cultura, de política, de economia, de guerra. Não creio que isso se tenha verificado em Portugal. É o que me dizem os meus amigos portugueses
Kodwo Eshun
Portugal, "um Estado imperial”
Com o Tejo ao fundo, em plena Lisboa, interrogamos o duo sobre o significado de expor numa cidade que foi a capital de um império colonial. “Portugal foi, talvez seja ainda, um Estado imperial”, replica Kodwo Eshun, num tom suave. “Porque a questão é: até que ponto os antigos impérios de facto se descolonizaram? Não tenho a certeza de que o tenham feito. Creio que os antigos impérios se declararam formalmente como não o sendo, mas em termos de conhecimento, educação, cultura, economia, finanças ou direito continuam a sê-lo. Diria, por isso, que uma descolonização completa também não aconteceu em Portugal. De modo nenhum. Pelo contrário. Afinal, a transferência política do poder não é uma descolonização total. Uma descolonização total exige a revolução de todas as formas de cultura, de política, de economia, de guerra. Não creio que isso se tenha verificado em Portugal. É o que me dizem os meus amigos portugueses.”
O artista faz uma pausa, antes de retomar o seu pensamento. “A história depois do colonialismo é diferente em cada país, mas há continuidades ao longo do continente. Portugal é um dos impérios que têm muito para responder sobre os crimes contra a humanidade. Nós trabalhamos sobre os crimes britânicos contra a humanidade e, nesse aspecto, somos aliados de pessoas como a Margarida Mendes, que trabalha as mesmas questões de outras maneiras. Enquanto Otolith Group pretendemos interrogar a aparência ou a imagem da descolonização e libertar certos imaginários de um horizonte imperialista e capitalista que tende a dominar e absorver as aspirações e os desejos das pessoas negras e dos europeus negros cujo trabalho, cuja energia e cujas vidas construíram a Europa." E continua: "Porque não há dúvida sobre isto: as pessoas negras construíram a Europa. Infelizmente, ainda não vejo curadores e artistas suficientes em posições de influência na cultura. Se já demos alguns passos, precisamos de ir mais longe e mais depressa. O nosso papel é encorajá-lo.”
Conseguirá o Otolith Group imaginar um momento, no futuro, onde isso acontecerá? “Não. Somos muito pessimistas. Sempre fomos. Especialmente depois do 11 de Setembro [de 2001]. Não creio que possamos ver esse cenário no nosso tempo de vida. Mas fazemos o que podemos no campo onde estamos, com os amigos e camaradas que também fazem o possível onde estão. Por isso, estamos aqui para dar apoio à Margarida [Mendes] naquilo que consideramos ser uma geografia comum de luta.”
De fora, insistem, fica a expressão política das identidades que consideram estranhas, e até contrárias, à sua posição. “O capitalismo racista produz categorias que as pessoas desempenham e criticamos essa política, sobretudo agora, quando essas categorias nos são impostas”, sublinha Anjalika Sagar.
Perceptível para quem entra na exposição continua a ser um modo poético de pensar as questões mencionadas. “Tenho muita raiva, fúria, pessimismo, mas, quando fazemos arte, a questão é de forma, não de expressão”, frisa Kodwo Eshun. “Não quero exprimir a minha raiva, mas encontrar uma forma de linguagem que crie um espaço para um encontro sensorial e somático. Há muitos passos entre a raiva que sinto todos os dias e o encontro com o trabalho. Quero que seja oblíquo, que tenha uma certa opacidade, um tipo de hermetismo. Não tornamos as coisas fáceis para os espectadores ou para nós. E isso é, em si mesmo, um gesto político.”
A Sphere of Water Orbiting a Star (2023) é o título da exposição que o duo e casal britânico The Otolith Group apresenta, até 23 de Setembro, no espaço lisboeta de artes Hangar, com curadoria de Margarida Mendes. Não é a primeira vez que Kodwo Eshun e Anjalika Sagar, que desde 2002 assinam com o nome Otolith Group, expõem em Portugal – recorde-se, por exemplo, a individual realizada em 2015 no Museu de Serralves –, mas há dois elementos que tornam singular este A Sphere of Water Orbiting a Star: trata-se da primeira individual em Lisboa e consiste numa reflexão poética e radical sobre o racismo, o capitalismo e a descolonização.
Há duas décadas que Kodwo Eshun e Anjalika Sagar, activistas, artistas, críticos e teóricos, fazem da arte contemporânea um campo de investigação e produção baseada na imagem em movimento, na ficção e na crítica. É neste quadro que surgem as referências ao fascinante mundo subaquático conhecido como Drexciya, criado pelo homónimo duo de música tecno. Antes de darmos a palavra à dupla, vale a pena descrever a instalação que dá o nome à exposição.
Na sala do espaço Hangar, no bairro da Graça, estão dois ecrãs. No da esquerda, vemos imagens de vagas marítimas de um azul escuro, quase enegrecido, sob o qual julgamos ouvir algo mais do que o marulhar das ondas. No da direita, ouvimos uma conversa entre Kodwo Eshun e Remnant of a Hydrogen Element (pseudónimo de Gerald Donald, uma das metades dos Drexciya). Falam devagar sobre um fantástico mundo subaquático, mas é Eshun quem faz as perguntas: o artista quer conhecer esse universo ficcional que, em termos temporais e espaciais, não parece assim tão fantástico ou distante. Palavras como tráfico, escravos, mulheres e crianças negras lançadas vivas ou mortas ao oceano vão assomando da conversa, enquanto, do outro lado, a água continua a cair.
Outros mundos, com a ficção sónica
A exposição que o Otolith Group traz a Lisboa está em diálogo permanente com a história e o trabalho do duo de Detroit formado por James Stinson e Gerald Donald. No vídeo, a relação com o imaginário e a música dos Drexciya (embora não a oiçamos) é central ao tema de trabalho. “Kodwo foi o primeiro crítico a escrever um ensaio sobre o universo estético, político e musical dos Drexciya”, revela-nos Anjalika Sagar. “Publicou um ensaio na [revista de música] The Wire e dedicou-lhes vários textos no seu livro More Brilliant Than the Sun: Adventures in Sonic Fiction [1998].”
A morte rodeia a vida negra na América, sempre rodeou. E a música dos Drexciya tratava de criar impulsos, ritmos, energias, fluxos que não objectificavam as pessoas negras. Não eram afro-futuristas, mas afro-pessimistas que tentavam criar um mundo abstracto a partir do qual pudessem imaginar, conceber e realizar outro tipo de vida
Anjalika Sagar
O interesse do artista levá-lo-ia, em 2010, a Detroit, para conhecer o membro sobrevivente dos Drexciya. “O James Stinson morrera em 2002 e fui à cidade”, conta-nos agora. “Entrevistei o Gerald Donald durante três ou quatro dias e usámos algum desse material no vídeo Hyrda Decapita [pode ser visto às quintas-feiras, às 19h, no Hangar]. Agora regressámos a essa entrevista e aos Drexciya e fizemos um novo trabalho sonoro com o compositor e designer de som Taylor Friedman. Não trouxemos o som tecno dos Drexciya de volta, mas, se quiser, a sua ficção sónica, sonora, científica. Aquilo que consideramos ser a construção ou criação de mundos que os Drexciya nos deixaram.”
The Otolith Group em Lisboa: “As pessoas negras construíram a Europa”
No Hangar, os visitantes podem consultar uma selecção de discos do duo musical, bem como imagens, textos teóricos e ficcionais que contextualizam a exposição e a relação entre o Otolith Group e os Drexciya. “Podemos dizer que fomos inspirados por eles”, admite Kodwo Eshun. “Movemo-nos no mundo da arte, da teoria e do discurso e, de certa maneira, apropriamo-nos de ideias, de pensamentos de que gostamos. Gerald Donald é muito bom a construir mundos ficcionais a partir das ideias contidas nas suas canções. De cada título, ele extrapola para um sistema cósmico, com outras condições planetárias, um mundo subaquático diferente do terrestre. É como um escritor de ficção científica ou ficção especulativa. É único nisso, porque o faz a partir da música. Uso muito o termo ficção sónica para designar o trabalho dele, pois consegue reunir a uma organização do som a própria ficção científica.”
Som, há som na Hangar, mas – e já o dissemos antes – não o da música tecno. Aproveitamos o passado de Kodwo Eshun enquanto crítico musical para lhe perguntar: o que o atrai no tecno? "Agradam-me os seus aspectos impopulares”, responde. “Enquanto a cultura popular gira à volta do hip-hop, o tecno permanece uma cultura impopular. Por exemplo, não é muito popular no top 40 ou no interior dos Estados Unidos, não está na imprensa, não vemos músicos [do tecno] a comentarem os seus discos. É uma cultura local e intensa que, mediante o seu poder electrónico, cria veículos para a imaginação de mundos.”
Mas que mundo são esses? E, sendo especulativos, o que nos podem dizer de certas realidades históricas? “Há outro pano de fundo para este trabalho que é o capitalismo racial, o modo como o racismo é subjacente a todas as formas de capitalismo”, comenta Anjalika Sagar. “Os Drexciya vieram de Detroit, onde imaginaram um mundo com a sua música abstracta, uma música que resistia, pela sua estética, à música que objectificava as pessoas negras. Do fundo das vidas negras, através das narrativas que produziam nos seus álbuns conceptuais, inventaram um mundo diferente. Ressoava na música que fizeram uma forma estética resistente à captura pelo capitalismo. A morte rodeia a vida negra na América, sempre rodeou. E a música dos Drexciya tratava de criar impulsos, ritmos, energias, fluxos que não objectificavam as pessoas negras. Não eram afro-futuristas, mas afro-pessimistas que tentavam criar um mundo abstracto a partir do qual pudessem imaginar, conceber e realizar outro tipo de vida.”
Uma vida contra e longe do terror e da violência do imperialismo e do colonialismo. Nas palavras de Margarida Mendes, que podemos ler na folha de sala, essa vida seria a de uma civilização subaquática na qual os rexciyans mutantes respirariam água: “Nascidos das escravas africanas que seguiam a bordo de navios negreiros em direcção à América e que foram lançadas ao mar, esses novos seres propunham uma alternativa a um modo de vida sequestrado.”
Uma descolonização total exige a revolução de todas as formas de cultura, de política, de economia, de guerra. Não creio que isso se tenha verificado em Portugal. É o que me dizem os meus amigos portugueses
Kodwo Eshun
Portugal, "um Estado imperial”
Com o Tejo ao fundo, em plena Lisboa, interrogamos o duo sobre o significado de expor numa cidade que foi a capital de um império colonial. “Portugal foi, talvez seja ainda, um Estado imperial”, replica Kodwo Eshun, num tom suave. “Porque a questão é: até que ponto os antigos impérios de facto se descolonizaram? Não tenho a certeza de que o tenham feito. Creio que os antigos impérios se declararam formalmente como não o sendo, mas em termos de conhecimento, educação, cultura, economia, finanças ou direito continuam a sê-lo. Diria, por isso, que uma descolonização completa também não aconteceu em Portugal. De modo nenhum. Pelo contrário. Afinal, a transferência política do poder não é uma descolonização total. Uma descolonização total exige a revolução de todas as formas de cultura, de política, de economia, de guerra. Não creio que isso se tenha verificado em Portugal. É o que me dizem os meus amigos portugueses.”
O artista faz uma pausa, antes de retomar o seu pensamento. “A história depois do colonialismo é diferente em cada país, mas há continuidades ao longo do continente. Portugal é um dos impérios que têm muito para responder sobre os crimes contra a humanidade. Nós trabalhamos sobre os crimes britânicos contra a humanidade e, nesse aspecto, somos aliados de pessoas como a Margarida Mendes, que trabalha as mesmas questões de outras maneiras. Enquanto Otolith Group pretendemos interrogar a aparência ou a imagem da descolonização e libertar certos imaginários de um horizonte imperialista e capitalista que tende a dominar e absorver as aspirações e os desejos das pessoas negras e dos europeus negros cujo trabalho, cuja energia e cujas vidas construíram a Europa." E continua: "Porque não há dúvida sobre isto: as pessoas negras construíram a Europa. Infelizmente, ainda não vejo curadores e artistas suficientes em posições de influência na cultura. Se já demos alguns passos, precisamos de ir mais longe e mais depressa. O nosso papel é encorajá-lo.”
Conseguirá o Otolith Group imaginar um momento, no futuro, onde isso acontecerá? “Não. Somos muito pessimistas. Sempre fomos. Especialmente depois do 11 de Setembro [de 2001]. Não creio que possamos ver esse cenário no nosso tempo de vida. Mas fazemos o que podemos no campo onde estamos, com os amigos e camaradas que também fazem o possível onde estão. Por isso, estamos aqui para dar apoio à Margarida [Mendes] naquilo que consideramos ser uma geografia comum de luta.”
De fora, insistem, fica a expressão política das identidades que consideram estranhas, e até contrárias, à sua posição. “O capitalismo racista produz categorias que as pessoas desempenham e criticamos essa política, sobretudo agora, quando essas categorias nos são impostas”, sublinha Anjalika Sagar.
Perceptível para quem entra na exposição continua a ser um modo poético de pensar as questões mencionadas. “Tenho muita raiva, fúria, pessimismo, mas, quando fazemos arte, a questão é de forma, não de expressão”, frisa Kodwo Eshun. “Não quero exprimir a minha raiva, mas encontrar uma forma de linguagem que crie um espaço para um encontro sensorial e somático. Há muitos passos entre a raiva que sinto todos os dias e o encontro com o trabalho. Quero que seja oblíquo, que tenha uma certa opacidade, um tipo de hermetismo. Não tornamos as coisas fáceis para os espectadores ou para nós. E isso é, em si mesmo, um gesto político.”
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