Graça Barbosa Ribeiro, in Jornal Público
O projecto que mudou a vidade Isabel chegou tarde para os filhos mais velhos. Mas não demasiado tarde. Porque, em quatro anos, ela descobriu que é capaz de transformar o futuro
Na sala de estar, Isabel tem uma fotografia onde aparece mais magra do que hoje. Está com a cabeça apoiada numa mão, o corpo estendido numa pose sensual sobre o capot de um automóvel desportivo vermelho e sorri para a objectiva - parece feliz. André, de seis anos, mostra a foto: "Olha a minha mãe num Ferrari!" Isabel tira-lha com um gesto brusco e volta-a ao contrário: "Não é um Ferrari. Por que é que não vais brincar?" Quer falar da vida nova. Não daquela de que faz parte a imagem, captada nas imediações do acampamento cigano onde cresceu, junto à estação de Coimbra B. E que, dá a entender, não era tão feliz quanto a fotografia pode fazer crer. "Para falar do passado ainda é cedo", repete.
Acaba de chegar ao apartamento para o qual se mudou com os cinco filhos quando, em 2005, abandonou o Parque para Nómadas (ver texto ao lado). Nessa altura, o marido, Mário Monteiro, ainda estava preso por tráfico de droga, tal como outros 15 homens da família. Mas esse é um dos assuntos que cala. Só o refere para dizer que, quando Mário saiu da cadeia, em Julho do ano passado, uma das suas primeiras preocupações foi espantar os traficantes das imediações da sua nova casa; só o refere para sublinhar o quanto "as coisas mudaram". "Não queremos confusões, agora que a vida parece estar a endireitar".
Na nova vida de Isabel não há automóveis topo de gama. Mas também não há correrias pela ruas estreitas da Baixa de Coimbra, uma mão a arrastar os filhos e outra a segurar um braçado de roupa, a fugir dos fiscais atentos à venda ambulante ilegal. Hoje, atravessa as mesmas ruas com o passo firme e um sorriso orgulhoso, a caminho da escola aonde vai buscar uma das filhas e a sobrinha. "Agora sei Português, Matemática, Tecnologias de Informação, Cidadania, Francês!" Ela própria acabou de sair da escola onde está a completar o 9.º ano de escolaridade e um curso de pedicura e manicura. Não abranda o passo para abrir um saco de plástico e retirar uma peça de roupa: "É a minha bata", apresenta, a sorrir. Isabel não duvida de que os estudos e o curso lhe permitirão arranjar emprego, assim que terminar o estágio profissional, dentro de alguns meses. Talvez tenha razão. O projecto de inserção social do Parque para Nómadas é uma espécie de rede de protecção para o grupo que ensaia uma vida diferente. Depois de estudar e fazer cursos profissionais na cadeia, Mário foi integrado num programa ocupacional e cumpre já "um segundo contrato", a limpar a mata de Vale de Canas.
Quando um dos cinco filhos do casal tem problemas na escola, as técnicas do Centro de Apoio Social do Parque para Nómadas acodem de imediato. "É como se fossem mães. Deles e minhas", diz Isabel. As técnicas foram as primeiras a saber da difícil decisão que Isabel acaba de tomar. Tão difícil que, mesmo antes de chegar à escola onde vai buscar Marisa, a transmite de rajada, para despachar o assunto: "Tirei a minha filha mais velha da escola". Isabel sabe que a escola é importante e di-lo. Os filhos mais novos, Mário, de seis anos, e André, de sete, frequentaram o jardim-de-infância e andam no 1.º e 2.º anos, tal como todos os meninos que nunca reprovaram. Marisa, de nove, mostra os cadernos, orgulhosa dos "Satisfaz bem" e "Satisfaz plenamente" que conquistou nos testes do 4.º ano. Elisa, de 15 anos, e Afonso, de 14, não tiveram as mesmas oportunidades.
Do tempo em que devia andar no jardim-de-infância, Afonso, ainda no 4.º ano, recorda a fama e o proveito de ser "o maior caçador de ratos" do acampamento. Quando fez seis anos matricularam-no, por causa do Rendimento Mínimo Garantido. Mas não aprendeu "nada". "Às vezes era eu que não ia à escola e, quando ia, também não aprendia. A professora dizia que eu podia dormir com os braços em cima da carteira ou fazer jogos". O importante era que não perturbasse as aulas.
Elisa, de 15 anos, é um caso diferente. "Eu sei o que é melhor para minha filha", insiste Isabel. Mas embrulha-se na explicação. Quer que a rapariga, com o 5.º ano de escolaridade incompleto, entre, quanto antes, no ensino profissional. Isabel não explica a pressa. E não é de Elisa que fala, mas de si própria. "
Vi pela primeira vez o Mário no Natal e, no Ano Novo, já estava casada. Tinha 13 anos", conta a mulher que cresceu numa família em que as meninas eram obrigadas a abandonar a escola à primeira menstruação, e em que, já adultas, não podiam ter uma vida independente ou sequer fugir com os filhos, porque a regulação parental era feita à força de braços que arrancavam as crianças dos colos das mães, fosse onde fosse que estas se escondessem. É de ver a sua vida repetir-se na vida da filha que Isabel tem medo. Um medo tão grande como a coragem de infringir, ao mesmo tempo, as regras do projecto de inserção social e as leis com que cresceu. "A Elisa sai da escola agora e, mal possa, faz um curso profissional. Para ter um emprego, para não depender de ninguém, para poder escolher o homem com quem quer casar, seja ele da minha ou da vossa raça", diz, com a mesma firmeza com que, ao chegar a casa, voltará ao contrário a fotografia dos tempos do acampamento.
Cala-se uns segundos, a detectar qualquer sinal de censura. Depois suaviza-se, sorri. Parece espantada com as suas próprias palavras: "Há quatro anos, não tinha poder para dizer isto. Agora tenho. Tenho poder que chegue para saber que ela vai ter um futuro diferente do meu".