Graça Barbosa Ribeiro, in Jornal Público
O projecto da autarquia coimbrã faz-se de histórias de sucesso e de insucesso. Porque "não basta oferecer oportunidades, é preciso que alguém as agarre"
É possível cortar o círculo vicioso da falta de escolaridade, da miséria e do crime. Foi nisto que acreditou o comunista Gouveia Monteiro, vereador da Câmara Municipal de Coimbra, quando há três anos criou o chamado "Parque para Nómadas" e lá instalou 35 pessoas do mais temido dos clãs de etnia cigana da cidade - os Monteiros - e as desafiou a participar num projecto inovador. Hoje, afirma que não se pode falar de sucesso, mas de "casos de aparente sucesso". Aprendeu que "oferecer oportunidades não basta, é preciso que alguém as agarre".
No dia 17 de Fevereiro de 2004, quando o parque foi inaugurado, junto aos campos do Bolão, Emanuel não se continha. A cada estranho que aparecia para a cerimónia abria as portas e arrastava-o para a casa de banho. Tinha 12 anos, acabara de tomar o primeiro duche da sua vida e nada o convencia de que essa não fosse a notícia do dia. A poucos quilómetros dali, o conjunto de casas, de barracas, de roulottes e tendas onde a família se "barricara" há 47 anos já tinha sido arrasado e as lágrimas de saudade estavam mais do que secas. As mulheres explodiam de orgulho das panelas de alumínio brilhantes expostas nas cozinhas e das mantas coloridas empilhadas nos quartos. Os garotos corriam excitados e não havia por ali voz de homem que os travasse: o avô, os pais e os tios, 16, ao todo, estavam detidos, por tráfico de droga.
Uma oportunidade política
Foi em visitas à prisão, onde ainda hoje está o patriarca José Monteiro, que o vereador travou a batalha que viria a culminar na mudança. "As opções políticas fazem-se de oportunidades", explica o autarca. A família de etnia cigana - que era presença assídua nos jornais locais por responder a tiro com provocação ou sem ela - proporcionou uma delas. Quando se tornou necessário libertar terrenos para a requalificação da estação ferroviária Coimbra B, a câmara descobriu que a família conseguira registar como sua uma parcela. Esta dificuldade foi ultrapassada nos tribunais, com o terreno a reverter para a autarquia a troco de 7600 contos. Mas sobrava um problema - o realojamento. "Não era uma família querida, pelo contrário, das outras de etnia cigana alojadas nos bairros municipais", recorda o vereador.
Estava ali a oportunidade. A autarquia investiu 700 mil euros na construção das habitações, 11 destinadas a outros tantos núcleos familiares e a restante a um centro de apoio social. A ideia não era criar um gueto, mas um "centro de estágio habitacional" inédito: os elementos do clã não encontrariam ali alojamento definitivo, mas a possibilidade de participar num projecto de inserção que os viria a habilitar a ocupar apartamentos em diferentes pontos da cidade. Psicólogas, animadoras culturais e professoras da Associação Fernão Mendes Pinto - uma instituição com a qual a câmara estabeleceu um protocolo para o efeito - iniciaram uma batalha tenaz. Redistribuíram as crianças por várias escolas, onde passaram a entregá-las e a recolhê-las; e, ao fim do dia, juntavam-nas no centro.
Foi ali que muitas, algumas nos 3.º e 4.º anos, aprenderam as cores; a estar sentadas no mesmo espaço sem guerrearem; a pedir por favor, a agradecer. Às mulheres impuseram regras de higiene, em casa e no espaço público; tarefas comunitárias; a participação em acções de formação; cuidados de saúde... Os homens tiveram acções de formação na prisão.Teimosia e persistênciaO projecto avançou. "Dois passos à frente, um atrás. E, às vezes, um passo à frente e dois atrás...", descreve Raquel Costa, animadora sócio-educativa. Diz que, muitas vezes, ela e as colegas aguentaram "mais por teimosia do que por persistência". As mulheres não valorizavam a escola; chamavam "chibo" a quem dizia a verdade; aceitavam os pequenos furtos dos garotos.
Não se apoiavam entre si, criticando as que faziam qualquer tentativa para se autonomizar. E tudo isto agravado pelo clima de conflitualidade permanente entre os membros da família, conta Clara Vaz, professora. O conflito dos MonteirosClara não fala no passado por os problemas terem acabado, mas porque se agravaram. Já depois de três núcleos serem realojados (ver texto ao lado) "tudo se desmoronou". A 5 de Outubro, um jogo de futebol terminou em tiroteio e três dos grupos abandonaram o parque. Semanas depois, quando quiseram regressar, o vereador não lhes permitiu que ocupassem as casas, onde já estavam outras famílias ciganas, mas aceitou que acampassem junto ao parque. Nascia um barril de pólvora - a 12 de Fevereiro estalou um novo conflito, desta vez entre Monteiros e "não-Monteiros".
"Temos de ser muito optimistas para, no meio de tanto insucesso, vermos algum sucesso", desabafa Clara Vaz. De um momento para o outro, o parque ficou apenas com três famílias. A maior parte dos Monteiros abandonou o parque. E, dizendo-se inseguros, os ocupantes mais recentes decidiram voltar às barracas, entre o Mondego e a linha do caminho-de-ferro. Para estes, a decisão teve consequências trágicas: a 8 de Março, um menino de dois anos foi mortalmente colhido por um comboio. Foi aquele acontecimento que fez alterar os planos do vereador, que decidira realojar as últimas famílias e encerrar o "ciclo Monteiro" antes de aceitar novos ocupantes. Este fim-de-semana, a família enlutada regressa às casas do Parque para Nómadas e Monteiros e "não-Monteiros" voltam a ser vizinhos. O vereador encara a situação, "delicada", como "mais um desafio": "Não desistimos. Não desistimos de dar oportunidades. Assim as queiram agarrar", diz.