18.3.07

Os processos "bem guardadinhos" e os pedidos de socorro em Campanhã

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

É uma das freguesias mais problemáticas do Porto. Alguns técnicos que gerem processos de RSI tentam gerar uma mudança que sabem lenta


Aldina entra, afoita, na Junta de Freguesia de Campanhã, no Porto. Qualquer coisa lhe humedece o olhar. A casa abarracada que habita com os cinco filhos está em risco iminente de ruína, têm de a deixar até ao fim do mês. A Câmara do Porto reencaminhou-a para a Segurança Social e a Segurança Social mandou-a encontrar casa - custeará um máximo de 200 euros. Pela legislação em vigor, o município não pode proceder ao despejo sem assegurar o realojamento temporário. Mas a viúva não sabe disso. Deita as mãos à cabeça. Tem quatro filhos menores (15, 11, oito e seis anos) e um maior (20 anos) em prisão domiciliária. Recebe 350 euros de rendimento social de inserção (RSI), mais uma prestação de 45 euros por cada filho menor. Cem esfumava-se na renda. Aldina gostava de viver num T3, mas como? No gabinete de Acção Social, uma funcionária põe-se à procura de apartamento, ciente de que por 300 euros não arranjará mais do que um T1. O caso é bicudo: não é só o curtíssimo orçamento; Aldina carece de competências para se desenvencilhar. E "muitos senhorios recusam alugar as casas" ao saber que a renda será comparticipada pela Segurança Social. A viúva nem sabe há quanto tempo a família beneficia de RSI. Talvez há sete, talvez há oito anos. O seu processo está na Segurança Social, que nunca lhe acenou com uma proposta de inserção e agora lhe exige que encontre casa sozinha. "A intervenção [na vida dos beneficiários de RSI] continua a ser avulsa, não se consegue emancipação", comenta o assistente social José António Pinto. A falta de "recursos para fazer o acompanhamento" origina até casos caricatos.

Ana é beneficiária de RSI desde 1998. Esta semana, recebeu uma carta da Segurança Social a pedir a sua comparência. Os serviços sabem que deixou de descontar para o regime geral em Julho de 2002 e deduzem que está desempregada desde então, mas nem por isso trataram antes de actualizar a sua prestação ou de lhe apresentar proposta de emprego ou formação. O seu processo permaneceu, anos a fio, adormecido. O que lhe vale é que não caiu no desemprego, só passou a descontar para a ADSE (Assistência na Doença aos Servidores do Estado). Com a entrada de instituições particulares de solidariedade social (IPSS) na gestão do RSI, encurtou o tempo de informatização dos requerimentos. Mas em Campanhã, como noutras áreas do Porto, ainda há quem espere mais de meio ano pela aprovação (ou reprovação) da candidatura. Uma vez por mês, reúne-se a secção de Campanhã do Núcleo Local de Inserção (NLI). Os parceiros expõem prioridades: cada técnico só pode apresentar quatro a seis casos. "Raramente se pega nos planos de inserção" - acaba por ficar tudo muito reduzido aos apoios mais urgentes, diz uma técnica que prefere não ser identificada. Um miúdo que precisa de uns óculos demora seis, sete meses a recebê-los. Não é só a burocracia. Amiúde, falta dinheiro nos cofres da Segurança Social. Já se nota alguma pressão para as IPSS receberem mais processos do que os 60 inicialmente protocolados. Em Campanhã, a Qualificar para Incluir (QPI) está com 60, a Fundação Filos com 87, a Ser Porto com 116, a junta de freguesia com cerca de 150. A QPI recusa gerir mais, sob pena de deixar de dar resposta personalizada, de se tornar igual à Segurança Social.

Autonomizar beneficiários de RSI é difícil. "Temos muitos adultos analfabetos", salienta a assistente social Patrícia Silva, da Filos. Antes de pensar em emprego, impõe-se apostar na alfabetização, trabalhar competências como cumprir horários, atender às questões da saúde. A QPI depara-se com o mesmo problema: "Conseguimos inserir pouquíssimas [pessoas no mercado laboral]", diz a assistente social Margarida Oliveira. Parece haver um mundo inteiro de vidas por consertar. "Pegamos em processos que não eram mexidos há seis, sete anos", vinca a assistente social Carla Tralhão, da mesma instituição. "Havia pessoas que perspectivavam o RSI como uma reforma; lembro-me de uma senhora que me disse: "O meu processo estava ali tão guardadinho". Não havia um trabalho de responsabilização", de exigência. As pessoas habituaram-se a recorrer aos serviços apenas para pedir apoios.

Com três protocolos, a QPI tem cinco beneficiários no primeiro ciclo do ensino básico, 20 no segundo e quatro no terceiro. "É preciso ver que há dois anos não estavam a fazer nada. Há um caminho que é preciso percorrer", sublinha Teresa Sequeira. Umas IPSS vão mais depressa, outras mais devagar. Em 2006, a Direcção Regional de Educação do Norte recusou o projecto de alfabetização da Filos. A instituição tenta remediar a falha com uma educadora social que ensina a ler e a escrever. Dá preferência aos agregados com filhos, tenta inserir os adultos em projectos como o Mães Que Cuidam ou o Competências Parentais, garantir que as crianças cumprem um plano de vacinação, frequentam um infantário ou uma escola. Sinais: à porta do velho edifício que acolhe a QPI, há um homem de pele curtida. Quando ali chegou, era um toxicodependente analfabeto que nunca tinha trabalhado. Está agora a aprender a ler e a escrever. Pediu para ser porteiro voluntário, só para "não pensar na droga". A mulher, alcoólica, ingressou num curso de tapeçaria. Não estão ainda preparados para enfrentar a crueza do mercado laboral, mas a filha ganhou ambiente familiar.