Rui A. S. Neves, in Jornal de Nogócios
Assinalando o “Dia Internacional de Erradicação da Pobreza”, o INE - Instituto Nacional de Estatística tornou publico, através de um “Destaque” datado de 15 de Outubro, um conjunto de informações relativo à situação socioeconómica do nosso país, com base no inquérito de 2005 às “Condições de Vida e Rendimento” dos portugueses.
Os números apresentados constituem, em minha opinião, motivo de grande preocupação e são sintoma de que “promessas” essenciais, fundadoras da nossa democracia, continuam por realizar.
Com efeito, passados mais de 30 anos sobre as “esperanças de 25 de Abril” e mais de 20 anos após a adesão ao “Club dos Ricos”, o que aquele estudo nos mostra não é a desejada fotografia a cores mas apenas a velha foto a preto e branco. De facto, 1 (um) em cada 5 (cinco) portugueses vivia ainda, no ano de 2005 (quinto ano do sec. XXI), em risco de pobreza, definido este como um rendimento mensal inferior a cerca de 360 euros por adulto equivalente (conceito segundo o qual, por ex., uma família tradicional com dois filhos é equivalente a pouco mais de dois adultos).
Atingindo a taxa de risco de pobreza da população, em geral, os 19%, eram particularmente vulneráveis, os idosos, sobretudo os que viviam sós (42%), as famílias numerosas (42%) e as mulheres (43% antes de transferências sociais, contra 39% para os homens na mesma situação).
Outra situação, igualmente ou ainda mais preocupante, é a desigualdade na distribuição dos rendimentos, situação em que registamos a maior desigualdade da UE a 25 (coeficiente de Gini igual a 38%). A situação é comprovada de forma dramática no documento em análise quando se afirma que, nesse ano de 2005, “à quinta parte da população com menores rendimentos correspondia 7% do rendimento monetário líquido das famílias enquanto que aos 20% da população com maiores rendimentos correspondia cerca de 45% do total do rendimento monetário líquido das famílias”.
Um terceiro aspecto que ressalta da informação em apreço é o papel insubstituível das transferências sociais para minorar os aspectos mais gritantes da situação de pobreza e desigualdade acima descrito.
De facto, foram estas transferências que permitiram reduzir a taxa de risco de pobreza da população portuguesa, que era de 41% se fossem considerados apenas os rendimentos gerados no mercado, para 19%, após a correcção resultante das transferências sociais. Destes, 15% foram da responsabilidade do sistema de pensões, sendo os restantes 7% da responsabilidade de outras transferências sociais, relacionadas, por ex., com situações de doença, desemprego, inserção social, e outras (valor que atinge os 10% nos países da UE a 25).
A importância destas transferências sociais faz-se sentir, em primeiro lugar, no grupo de maiores de 65 anos que, sem elas, sobretudo sem o apoio do sistema (público) de pensões, se situaria num risco de pobreza de 82%. Este valor dá bem uma imagem dos problemas que ainda nos esperam com o futuro do sistema de pensões, considerando que a nossa “especialização” de mão de obra barata e sem formação, que está necessariamente associada a uma limitada ou inexistente capacidade de poupança durante a vida activa, tem vindo a criar sucessivas gerações de “futuros” idosos, desprovidos de reservas de poupança significativas e, portanto, totalmente dependentes do sistema público de pensões.
A situação atrás descrita merece algumas reflexões. Desde logo, destaco a necessidade de manter um sistema público (i.e., com base nos impostos) de apoio ao sistema de pensões até que se atinja, a médio prazo, uma situação em que as populações mais idosas disponham de fontes alternativas de rendimentos (prolongamento da vida activa e outras formas de poupança realizadas durante a vida profissional).
Em segundo lugar, devo referir o papel fundamental das outras transferências sociais para redução do risco de pobreza, contrariando aqueles que entre nós têm defendido as teses contrárias (ie, que as transferências sociais aumentam o risco de pobreza). Em qualquer caso, é um poderoso argumento para contrariar eventuais reduções de impostos enquanto o risco de pobreza das populações mais fragilizadas não for substancialmente reduzido.
É também necessário reflectir sobre a relação entre o risco de pobreza e o número de filhos quer do ponto de vista da protecção à família e da garantia dos direitos de educação e desenvolvimento das crianças quer do ponto de vista das anunciadas políticas de apoio à natalidade. Neste campo, há ainda muito a fazer.
A luta contra a pobreza e a exclusão social é um dos objectivos fundamentais do “modelo social europeu”. Ora, a vivência e a prosperidade que este modelo tem proporcionado, garantindo uma elevado nível de coesão social, repousa sobre um compromisso de solidariedade que depende da eficiência e da equidade do sistema fiscal.
Querer manter, como tem sido defendido, o compromisso social a nível elevado e, simultaneamente, pretender reduzir o nível de fiscalidade é, no mínimo, um engano ditado pela ignorância e, em qualquer caso, uma promessa sem futuro. Podemos defender ou não o “modelo social europeu” mas devemos ter consciência que o seu financiamento exige uma cobertura de receitas fiscais adequadas e com um nível relativamente significativo.
Há ainda a acrescentar, a tudo nisto, que sendo o nível de fiscalidade, no nosso país, inferior ao nível médio da UE, o peso do IVA é aqui, no entanto, superior, o que agrava ainda mais a situação de pobreza absoluta e relativa. O que quer dizer que, no futuro, a fiscalidade terá de reequilibrar-se, transferindo algum peso da área do “consumo” para a área do “rendimento” e do “património”.
Sendo os recursos, por definição, escassos, particularmente em período de contenção da despesa pública, e sendo inadiáveis as prioridades de apoio à capacidade competitiva da nossa economia, há que fazer escolhas entre o nível de solidariedade e coesão social a garantir e o custo do salto de competitividade que a globalização nos impõe (ambos competindo por recursos provenientes do OE).
Mas esta escolha é apenas quanto ao nível de solidariedade a atingir. Não poderão ser, nunca, relativamente à pertinência de questões que constituem o cerne e a base do conceito de solidariedade social.
Os indicadores que vimos a analisar definem, portanto, uma área crítica de “afastamento” relativamente às “esperanças” e aos “compromissos políticos” que a III República assumiu com os portugueses. Não é possível nem ignorá-los, nem minimizá-los nem repudiá-los.
A sua erradicação tem de continuar a ser uma das principais prioridades do sistema político.