31.10.07

Sociedade civil e participação social

in Agência Ecclesia

Conferência de D. Manuel Clemente na "Exposolidariedade"


SOCIEDADE E ESTADO

1. Quero, antes de mais, reconhecer a grande oportunidade da presente iniciativa e agradecer o convite para participar desta maneira. Tudo quanto respeite à valorização e dinamização da sociedade civil é hoje de suma importância e premência; e o convite à Diocese do Porto para integrar estes dias de estudo e partilha reconhece o que se faz sob a sua égide no exigente campo das actividades sociais de âmbito local ou regional.

O que vos trago aqui é apenas uma breve reflexão, com alguns pontos essenciais do pensamento social cristão – ou Doutrina Social da Igreja – diariamente preenchidos com a prática consequente de centenas de instituições (da Diocese, das paróquias, das Misericórdias, irmandades e confrarias, das conferências vicentinas, das congregações religiosas, etc.), que envolvem milhares de católicos neste sector. Juntar-lhes-ia a reflexão que muitos outros crentes vão fazendo, a partir do respectivo envolvimento em actividades congéneres a título particular e do exercício da cidadania comum, aos mais diversos níveis.

Que a temática é do maior relevo, não restarão dúvidas a ninguém. Depois de menos intervencionismo estatal; depois de outros tempos e tentativas, mais absorventes por parte da administração pública no campo social, vamos concluindo ser indispensável a colaboração de todos, com espaço maior e mais respeitado para as iniciativas de âmbito local e regional, particulares, autárquicas ou outras.

Nos próprios textos da União Europeia vão surgindo referências ao princípio da subsidiariedade, tema tradicional da Doutrina Social da Igreja, que – já na encíclica Quadragesimo Anno, do Papa Pio XI, em 1931! - se definiu do seguinte modo: “Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e trabalho, para o confiar à comunidade, do mesmo modo, passar para uma sociedade maior e mais elevada o que comunidades menores e inferiores podem realizar, é uma injustiça” (1).

Trata-se, afinal, de respeitar a sociedade na sua natureza mesma, ou seja, de reconhecê-la como conjunto inter-pessoal de relações criativas e solidárias. Sociedade como agregação de pessoas, que somam vontade à natureza, para, livre e responsavelmente, servirem um objectivo comum. Sociedade que, por isso mesmo, para si gera um serviço geral, chamado Estado, seu primeiro órgão para a promoção do bem comum. Mas, precisamente porque serve a sociedade e o respectivo dinamismo, o Estado e os seus organismos são subsidiários dela e não seus óbices ou entraves.

Também a este respeito se diria que “não há nada mais prático do que ter ideias claras”. Ideias que brotam da experiência positiva do devir social, tal como ele se manifesta e redunda em benefícios reais dos cidadãos, e não de algum apriorismo mental ou ideológico, que quisesse inventar uma outra sociedade, em detrimento do que ela realmente – e, neste caso, felizmente, – é e pode ser ainda mais e melhor.

COMBATER A POBREZA

2. Sejamos então “práticos”, ainda antes de sermos teóricos. Partindo, aliás, de algumas declarações recentes do Senhor Presidente da República, recolhidas num jornal diário. Tiveram impacto na altura e é bom que ressoem de novo:

“‘Envergonho-me um pouco desta posição’, afirmou Cavaco Silva na inauguração do Banco de Bens Doados, na Quinta do Cabrinha, uma nova instituição de apoio social, referindo-se à posição de Portugal na lista dos ‘10 países em maior risco de pobreza’ na União Europeia ao nível de ‘desigualdade na distribuição de rendimentos’ referidos nos últimos números do Instituto Nacional de Estatística (INE). ‘Estou convencido que o Estado só por si não consegue resolver estes problemas’. Acrescentou o chefe de Estado, afirmando que é preciso que ‘os cidadãos se organizem, trazendo ao de cima a sua consciência social’ para combater a pobreza” (2).

Reparemos no contexto, altamente significativo para o nosso fim: o Presidente da República, uma Câmara Municipal, uma instituição de solidariedade, alguma população local: todos se juntaram para, de um ou outro modo, levarem por diante e garantirem uma “actividade social [absolutamente] descentralizada de âmbito local”, para usar o tema que me deram para esta intervenção na “Exposolidariedade”.

A ideia, o projecto e a realização, tudo partiu de um grupo espontâneo de cidadania activa. Os meios, tirando o espaço cedido pela Câmara, também provêm da generosidade particular. O Chefe de Estado corrobora e exalta a iniciativa. Mas faz ainda mais na ocasião, declarando a incapacidade do Estado para resolver por si só o problema da pobreza. ”Problema” que é, aliás, o mais básico e urgente de qualquer sociedade…

Não será descabido juntar-lhe outros: da educação ao ensino, da juventude à velhice, do emprego e desemprego aos chamados “tempos livres”. Nestes campos, o poder central, devendo proporcionar os mínimos a todos, não pode satisfazer cabalmente os legítimos anseios de cada um. Creio que, ainda que pudesse, não o deveria fazer, porque, sendo a agregação dos cidadãos para garantir o bem comum, só o fará em termos personalistas, isto é, reconhecendo e estimulando as mais diversas iniciativas que a criatividade social e a solidariedade particular, autárquica e regional forem somando.

Só assim a funcionalidade social poderá coincidir com a realização pessoal e inter-pessoal, primeira e última substância do bem comum, fundamento e legitimação do próprio Estado. Para mais, séculos de ilusões e desilusões políticas e culturais já nos deviam ter convencido de que o desrespeito por tal espontaneidade social e cívica gera negativamente o amorfismo social, o escasso rendimento económico e a desmotivação da cidadania.

INTERVENÇÃO E INICIATIVA

3. Vale a pena determo-nos um pouco sobre o próprio conceito de “sociedade civil”. Não indica ele um conjunto indiferenciado de indivíduos sob a tutela da administração pública. Nem uma massa igualmente incaracterística de multidões anónimas. Referindo-se à sociedade, refere-se portanto a pessoas, seres humanos em relação e interacção, donos de vontade e de projectos próprios. A sociedade civil é sobretudo o conjunto harmónico ou harmonizável dos corpos intermédios que a constituem, que só respeitados funcionam e só apoiados resultam como devem resultar, em benefício do todo.

Não são despiciendas, neste sentido, outras considerações da Doutrina Social da Igreja, sendo ela a sistematização de muito pensamento e ainda mais acção duma das tradições mais consistentes e personalistas da nossa civilização e cultura. Como, por exemplo, as seguintes: “É impossível promover a dignidade da pessoa sem que se cuide da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais, por outras palavras, daquelas expressões agregativas de tipo económico, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, político, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efectivo crescimento pessoal. É este o âmbito da sociedade civil, entendida como o conjunto das relações entre indivíduos e entre sociedades intermédias, que se realizam de forma originária e graças à ‘subjectividade criadora do cidadão’. A rede destas relações […] constitui a base de uma verdadeira comunidade de pessoas, tornando possível o reconhecimento de formas mais elevadas de sociabilidade" (3).

Sabemos e sentimos a forte anemia social dos nossos dias, repartidos que estamos, individualmente, por mil necessidades e outras tantas sugestões de consumos vários. Somam-se concorrências e marginalizações, dentro do mesmo sem-sentido. Associações locais da mais diversa índole, da beneficência ao desenvolvimento em geral, encontram grande dificuldade em juntar sócios e constituir ou reconstituir direcções...

Se a esta rarefacção da sociabilidade se juntar alguma displicência da administração ou o açambarcamento estatal, não admira que a desmotivação pessoal ainda cresça mais e a cidadania criativa e participativa também se esvaneça. A sociedade e a sociabilidade não descem do topo nem se pressupõem sem o empenho de quem realmente zela pelo bem comum. Crescem pela motivação das pessoas que tomam a cidadania como aventura e risco, requerem reconhecimento e promoção por parte dos responsáveis pelo bem comum.

Este princípio aplica-se aos diversos domínios. Na economia, especialmente, deverá equilibrar a necessária intervenção directa do Estado com a iniciativa privada, igualmente indispensável. São muitas décadas de observação e experiência que permitem à Doutrina Social da Igreja formular-se nos seguintes termos, basicamente humanistas e personalistas: “Em todo o caso, a intervenção pública deverá ater-se a critérios de equidade, racionalidade e eficiência, e não substituir a acção dos indivíduos, contra a sua liberdade de iniciativa económica. O Estado, neste caso, torna-se deletério para a sociedade: uma intervenção directa excessivamente açambarcadora acaba por desresponsabilizar os cidadãos e produz um crescimento excessivo de aparelhos públicos guiados mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de satisfazer as necessidades das pessoas” (4).

A afirmação poderia parecer excessiva, não fosse ela confirmada por inúmeras concretizações negativas. Também acreditamos não ser fácil a nenhuma administração pública mudar rapidamente estruturas pesadas e quantitativos de funcionários. Mas, mais uma vez, ter uma visão positiva das capacidades da sociedade civil e das virtualidades das iniciativas que dela brotam nos diversos campos é meio caminho andado para o que falta percorrer em real benefício de todos.


PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE

E isto também e especialmente no que diz respeito à ultrapassagem de situações de pobreza, mais ou menos gritante. Não se vencem senão com o estímulo e o bom acompanhamento das iniciativas pessoais ou de grupo. Também aqui a Doutrina Social da Igreja fala do que sabe, pois tem por dentro múltiplas actividades desenvolvidas nos cinco continentes: “O princípio da solidariedade, também na luta contra a pobreza, deve ser sempre oportunamente ladeado pelo da subsidiariedade, graças ao qual é possível estimular o espírito de iniciativa, base fundamental de todo o desenvolvimento sócio-económico, nos países pobres: aos pobres se deve olhar ‘não como problema, mas como possíveis sujeitos e protagonistas dum futuro novo e mais humano para todo o mundo’” (5).

Digamos, por fim, que falar da dimensão local ou regional, é falar das primeiras e essenciais radicações e dimensões do ser humano, enquanto pessoa, isto é, alguém que se realiza unicamente na relação crescente, mas a partir da proximidade. Muita da carga anímica que impulsiona as iniciativas da sociedade civil advém precisamente desses primeiros níveis de sociabilidade criativa.

Esquecer ou iludir esta realidade é hipotecar seriamente o desenvolvimento de qualquer país. E digo desenvolvimento, pois este só acontece onde ao crescimento quantitativo se soma a realização pessoal e inter-pessoal, como construção conjunta e resposta envolvida de cada um. Joga-se inteiramente aqui o futuro humano da sociedade de nós todos.

Paços de Ferreira, 25 de Outubro de 2007
D. Manuel Clemente, Bispo do Porto



NOTAS:

1 - Cf. CONSELHO PONTIFÍCIO “JUSTIÇA E PAZ” – Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n.º 186. Lisboa: Principia, 2005, p. 129. E o Compêndio continua, no mesmo número: “Com base neste princípio, todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda (subsidium) – e portanto de apoio, promoção e incremento – em relação às menores. Desse modo os corpos sociais intermédios podem cumprir adequadamente as funções que lhes competem, sem ter que cedê-las injustamente a outras agregações sociais de nível superior, pelas quais acabariam por ser absorvidos e substituídos, e por ver-se negar, ao fim e ao cabo, dignidade própria e espaço vital”.

2 - NÚMEROS da pobreza envergonham Cavaco Silva. O Primeiro de Janeiro. (18 de Outubro de 2007) 40. E o artigo continua, dando conta da iniciativa e de mais comentários de Chefe de Estado: “A responsável do Banco, Isabel Jonet, afirmou que o material recolhido será distribuído pelas instituições de acordo com a actividade que desempenham e o tipo de população que ajudam […]. Assim, sem terem de gastar dinheiro com os bens fornecidos pelo Banco, as instituições ficarão mais aliviadas financeiramente para contratar mais pessoal ou gastar em outras áreas onde tenham carências. Isabel Jonet afirmou que a instalação do Banco na Quinta do Cabrinha, num parque de estacionamento propriedade da Câmara de Lisboa que nunca foi utilizado, se destina também a ‘contribuir para a recuperação do bairro e ajudar os moradores, envolvendo-os’ em acções de voluntariado. O Banco, que não recebe artigos em segunda mão, só novos, terá também uma oficina de marcenaria e informática. Receberá ainda equipamentos electrónicos e eléctricos, aproveitando os que ainda podem ter uso e encaminhando os restantes para reciclagem. Cavaco Silva considerou a iniciativa um ‘bom exemplo do envolvimento cívico para a inclusão social’”.

3 - Compêndio de Doutrina Social da Igreja, nº 185, p. 129. Cf. ibidem, n.º 186: “O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, e não destruí-los nem absorvê-los”

4 - Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 354, p. 227-228.

5 - Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 449, p. 285, incluindo uma citação de JOÃO PAULO II, Mensagem para a Celebração do Dia Mundial da Paz 2000, nº 14.