2.11.07

Pobreza, direitos humanos e cooperação para o desenvolvimento

in Esquerda.Net

Nem a Carta [das Nações Unidas], nem as sucessivas Décadas de Desenvolvimento adoptadas pelas Nações Unidas, nem as estratégias postas em prática pelas suas agências especializadas, foram capazes de evitar a vergonha global que é a cifra de 50.000 mortes diárias por razões relacionadas com a pobreza.


Talvez o facto de se chegar à viragem do século empunhando como imperativo os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio seja para as Nações Unidas e para a comunidade internacional no seu conjunto a prova de um importante fracasso. Afinal de contas, a Carta das Nações Unidas já tinha explicitado, há mais de seis décadas, o propósito essencial de avançar para uma paz integral, feita não apenas do silêncio das armas mas também de criação de condições de justiça social e económica que alimentassem uma paz positiva.

Mas a verdade é que nem a Carta, nem as sucessivas Décadas de Desenvolvimento adoptadas pelas Nações Unidas, nem as estratégias postas em prática pelas suas agências especializadas, foram capazes de evitar a vergonha global que é a cifra de 50.000 mortes diárias por razões relacionadas com a pobreza. Vistos do Sul global, os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio arriscam-se a ser uma retórica mais, que se vem juntar ao longo cortejo de retóricas que descansam consciências a Norte. Sendo um programa assumidamente minimalista - ao ponto de algumas das suas metas escandalizarem pelo simples facto de ainda terem que ser enunciadas - os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio sucedem às Estratégias de Redução da Pobreza e aos Planos de Ajustamento Estrutural antes delas. Em cada um destes tempos, o discurso foi invariavelmente o mesmo: acabar com o flagelo da pobreza e criar condições para o estreitamento do fosso entre países ricos e países pobres. Escandalosamente, os resultados também foram invariavelmente os mesmos: manutenção da pobreza e do diferencial entre mundo rico e mundo pobre em registos inaceitavelmente altos e dramáticos. E assim, o que mais confrange é o minimalismo dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, quando comparado com a arrogância com que as receitas anteriores foram proclamadas e aplicadas. E, sobretudo, quando se torna evidente que a receita seguinte pouco mais visa do que suavizar as feridas deixadas pela receita anterior. Este experimentalismo que tem marcado a governação do centro sobre a periferia do sistema internacional constitui o mundo rico numa elevadíssima dívida social e moral para com os países mais pobres. E, talvez melhor do que ninguém, os parlamentares tenham distância crítica e sentido de responsabilidade política para a denúncia necessária deste facto central.

Uma leitura idealista enfatizaria duas motivações para o prosseguimento, apesar de tudo, de políticas de cooperação para o desenvolvimento de suposto alcance global. A primeira é o próprio direito à vida - porque o que está em causa é o cumprimento de exigências básicas de sobrevivência e de decência, incluindo o direito à alimentação, o direito à água, o direito à terra, o direito a um ambiente equilibrado, o direito ao trabalho e ao seu pagamento justo, ou o direito a serviços universais de cuidados de saúde. Em última análise, o direito ao presente e ao futuro. Em segundo lugar, a segurança humana. No plano das ideias - e, em alguma medida, no plano das políticas - os velhos conceitos que identificaram segurança com segurança nacional, defesa das fronteiras do Estado e contenção das ameaças externas, deram lugar a novas prioridades, centradas na segurança das pessoas e na protecção do núcleo vital da sua existência de um modo que fortaleça as liberdades e o bem estar de cada um e de cada uma. Uma segurança, enfim, pensada como combinação de freedom from fear e de freedom from want.

A verdade, porém, é que, desgraçadamente, uma visão confiante na força transformadora desses dois pilares de dignidade universal se revela fragilmente idealista. A realidade da ordem internacional contemporânea é, por um lado, a de políticas que retiram ao direito à vida dos mais pobres o sentido federador de outros direitos fundamentais e, por outro, a de uma perversão do ideal de segurança humana, pensado para a protecção dos povos e grupos humanos mais vulneráveis, mas transformado, sobretudo no quadro da agenda actual da chamada "guerra contra o terrorismo", no primado da segurança dos países ricos e desenvolvidos contra alegadas ameaças vindas do mundo pobre. Este é, com efeito, um tempo de radicalização inédita da relação entre o Norte e o Sul, com uma marcada tendência para a dupla penalização mundial da pobreza periférica: punida por ser pobreza e sobre-punida por, sobre ela, se construir uma narrativa da ameaça (a ameaça terrorista, a ameaça demográfica e sócio-laboral, a ameaça das pandemias, a ameaça do contágio das guerras de barbárie) em que se fundam perspectivas e políticas de inspiração criminalizadora. Em escala mundial reproduz-se afinal o universo de representações e de estereótipos das nossas malhas urbanas...

Os índices de pobreza mundial, sobejamente conhecidos, desmentem categoricamente que a metáfora da aldeia global seja a mais indicada para retratar a globalização real, aquela que é conduzida segundo um cânone neo-liberal e que, como tal, polariza sociedades e regiões. Não é, com efeito, uma realidade de nivelamento básico e de entreajuda, típica de uma aldeia, aquela que experimentamos em escala global, mas sim a de assimetrias crescentes ideologicamente legitimadas.

Nesse contexto, as políticas de desenvolvimento tendem a ser cada vez mais técnicas de contenção do mundo pobre, orientadas por uma lógica muito mais preocupada em evitar a explosão social e a sua repercussão nas nossas sociedades de conforto do que em criar condições efectivas para uma emancipação social alargada nos países mais pobres.

O arrojo necessário de políticas de transformação do nosso modo de vida colectiva e de afirmação de uma nova ordem económica mundial - com implicações inevitavelmente perturbadoras dos cânones dos sistemas comercial e financeiro internacional - (esse arrojo) perdeu-se no conformismo diante da ordem liberal dos poderosos. E hoje, nas políticas nacionais como nas políticas internacionais, abdicou-se de um combate aos mecanismos económicos e sociais que geram pobreza e o discurso oficial passou a ser o do elogio de medidas pontuais de inclusão na ordem de sucesso vigente. É assim com todos os pobres, sejam indivíduos ou Estados.

Ora, pôr os direitos humanos na ordem do dia na relação com a pobreza em escala mundial implica sempre não menos do que uma transformação profunda das políticas que alimentam essa pobreza e esse fosso entre mundos. E é isto que é negligenciado, em favor de práticas de cooperação para o desenvolvimento que, para lá da generosidade genuína de alguns dos seus actores, ficam sempre aquém das mudanças necessárias.

Assim, por exemplo, por mais que a União Europeia exiba um historial longo de cooperação para o desenvolvimento com países africanos e da América Latina, enquanto não tiver a coragem moral e política de pôr fim ao proteccionismo dos seus mercados - designadamente no campo dos produtos agrícolas - terá sempre um posicionamento dual e, portanto, desautorizado. Aliás, esta visão crítica da actuação da união Europeia no terreno da cooperação para o desenvolvimento justifica-se ainda mais agora, diante da iminência da celebração dos chamados "acordos de parceria económica" com os países de África, Caraíbas e Pacífico - provavelmente o resultado mais concreto da próxima cimeira União Europeia/África - e que mais não são do que acordos de comércio livre, pautados pelos ditames da Organização Internacional do Comércio e, portanto, guiados por um princípio de reciprocidade de direitos entre ricos e pobres que, tratando igualmente aquilo que é desigual, anunciam acrescentos de vulnerabilidade a mercados e sociedades frágeis em si mesmos.

O tempo actual é de ventos adversos sobre a prioridade de um combate estrutural à pobreza e aos mecanismos que a geram. Há uma mudança de visão de fundo a operar, que arranca da consideração da pobreza como a mais grave violação em larga escala de direitos humanos, na linha de uma petição dinamizada pela Comissão Nacional Justiça e Paz recentemente entregue a esta Assembleia da República. Num tempo como o nosso, em que as políticas de cooperação para o desenvolvimento oscilam entre o minimalismo do socorro de emergência e da assistência humanitária básica e o maximalismo de exercícios de engenharia social e política que se arrogam o direito de redesenhar sociedades inteiras e as respectivas instituições para agradar a modelos de suposta boa governação ditados a partir de fora, num tempo assim, pôr os direitos humanos na ordem do dia enquanto sentido último da cooperação para o desenvolvimento é algo que implica opções políticas claras e fortes. Acima de todas, a opção por regressar, em escala mundial, ao primado da indivisibilidade dos direitos humanos. Contra a moda neo-liberal de hierarquizar direitos para os limitar e para anular a força vinculativa dos direitos económicos, sociais e culturais, é crucial assumir que o único horizonte certo para as políticas de cooperação para o desenvolvimento é o do reconhecimento e respeito pleno pelos direitos humanos dos homens e das mulheres mais pobres, incluindo aí, a título pleno, os direitos económicos e sociais. Como direitos e sempre e só como direitos, não como privilégios condicionados pelas circunstâncias e pelos juízos de oportunidade política.

Ouso pensar que não haverá combate à pobreza eficaz em escala mundial enquanto se mantiver uma duplicidade de atitude dos Estados mais ricos e poderosos em relação aos direitos civis e políticos por um lado, e aos direitos económicos, sociais e culturais por outro. Ouso pensar que não haverá combate eficaz à pobreza como violação, em escala mundial, dos direitos humanos enquanto o padrão político e ideológico defendido no mundo rico for o de enfraquecimento dos sistemas universais de acesso aos bens públicos fundamentais. Ouso, enfim, acreditar que não haverá coerência nos combates contra a pobreza enquanto violação dos direitos humanos enquanto as políticas dos Estados mais ricos e poderosos - a começar pela União Europeia, continuarem a ignorar o carácter vinculativo do artigo 28º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece: "Toda a pessoa tem o direito a que reine, no plano social e internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciados na presente Declaração".

Se a Presidência portuguesa da União Europeia tiver conseguido fazer inflectir a Europa para estes caminhos, teremos andado bem.

Artigo de José Manuel Pureza, professor universitário (Universidade de Coimbra)