Graça Menitra, in Jornal de Leiria
Agostinho Jardim Moreira, pároco no Porto, presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal
Conterrâneo do reconhecido Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que o nomeou há 40 anos para pároco da Ribeira, Agostinho Moreira é presidente em Portugal da Rede Europeia Anti-Pobreza. É igualmente uma voz inconformada que, quando é preciso, ousa enfrentar a hierarquia da Igreja Católica a que pertence e também as políticas do Governo
Ajudar os pobres é o que mais lhe agrada fazer?
Os pobres. Sempre os pobres. São um desafio constante e uma exigência grande para viver mais aproximadamente o Evangelho. Também me obrigam a fazer, quase anualmente, uma reformulação da pastoral e das respostas sociais. Quando comecei aqui, em 1969, na Ribeira (freguesias de S. Nicolau e Vitória, na periferia da Torre dos Clérigos) praticamente não havia nenhuma obra social e hoje temos várias. Continuam a ser as mais pobres, embora já não as mais populosas devido à desertificação – em 40 anos perderam mais de 20 mil habitantes. Hoje tenho menos gente mas muitos mais problemas. As pessoas estão isoladas porque não há resposta da família, nem da gente com dinheiro para poder partilhar com as necessidades dos mais fracos. Hoje tudo acorre ao padre e à Igreja numa atitude de exigência. Como se a Igreja tivesse obrigação de fazer aquilo que cabe ao Estado. Como o meu nome vai aparecendo nos jornais e na televisão, acham que isso é uma mais valia de poder intervir a seu favor. O que não deixa de ser verdade mas não é essa a minha missão explícita. Até porque tenho a direcção em Portugal da Rede Europeia Anti-Pobreza (REAP) que me preenche muito tempo.
O que faz exactamente esta Rede em Portugal ?
A rede tem uma sede em cada distrito, com um técnico e um grupo de voluntários. Também temos uma parceria com Madrid. Há 15 dias, tivemos a reunião europeia em Viena, Áustria, com os 27 países, e tive a satisfação de alguns presidentes de redes de outros países virem ter comigo por reconhecerem que a rede portuguesa é das mais bens estruturadas da Europa. Isso dá-me uma certa satisfação. E os espanhóis fazem questão de o tornar público. Mas ao princípio riam-se e perguntavam o que é que um padre ia fazer por Portugal. Quiseram impor-me os seus modelos, como Espanha, França ou Itália, que acabaram por não ter sucesso. Neste momento, entre os países do sul, a melhor rede europeia é a portuguesa.
Qual o segredo?
Muito simples: trabalhar para as pessoas e não procurar sucesso fácil. Quando as ideias e as obras são válidas acabam por se impor por si. O primeiro passo, foi procurar mudar as mentalidades dos políticos para que aceitassem conhecer a realidade da pobreza em Portugal, porque em 1990, Bruxelas não tinha um único dado do nosso País. Todos os anos, a rede, em conjunto com a União Europeia e com o país que a preside, promove um encontro de pobres dos 27 países, em Bruxelas, para exporem as suas críticas às políticas sociais e apresentar propostas à Comissão. Um dos êxitos foi o facto da pobreza ter ganho foros de cidadania e ser levada às agendas políticas nacionais dos seus países. A sociedade civil precisa também de assumir muito mais este papel, que descarregou em cima do Estado e este não deve fazer tudo. Mas o Governo também se apoderou desse poder para manipular as suas políticas. É importante o princípio da subsidiariedade e de parcerias que, ultimamente, a nível do Ministério não existem.
No Porto, preside à Agência de Serviços da Área Metropolitana. Qual a sua função?
Vou ao encontro dos mais pobres e capacito-os para o trabalho. Os pobres mais pobres, normalmente, não confiam em si próprios. Acham que não têm capacidades, que não sabem. Trabalhamos com desempregados de longa duração, que vivem do rendimento mínimo de inserção. É preciso sensibilizar esta gente a aprender a gostar de trabalhar, adquirir auto-estima e descobrir as suas potencialidades. E é bonito ver a alegria, sobretudo nas mulheres, porque já sabem mexer no computador, fazer um currículo, dizer umas coisas. O objectivo é que entrem depois nos cursos de formação profissional e na vida activa. São gente jovem que, sem preparação prévia, depois engrenam na equivalência do curso das Novas Oportunidades.
Porque é então considerada uma voz crítica pela Igreja Católica?
Porque o Evangelho é para as pessoas e Cristo morreu pelas pessoas e se não é pelas pessoas que a Igreja trabalha também não tem grande sentido. Isto escandaliza às vezes um pouco a hierarquia católica mas que escandalize. Não me importo nada, porque esta é que é a verdade. O Mandamento diz: Amar o Próximo. É necessário que o Evangelho surja com o seu vigor e a sua real vitalidade e interferência em defesa dos injustiçados. É esta minha linguagem que continua a escandalizar mas a verdade é que a pobreza é fruto da injustiça. Não é possível admitir que em Portugal a percentagem de pobres seja a que ainda é. Estamos ainda muito longe de uma igreja identificada com o Evangelho e com Jesus Cristo, o que me penaliza bastante. A Igreja continua muito passiva até parece que tem medo, mas medo de quê? Ou então falta-lhe alguma garra para pregar aquilo que devia viver. Porque se a igreja não vive não pode pregar, pois só é evangelizador quem está evangelizado. Quem tem em si o dinamismo do espírito é afoito, é destemido, anda para a frente e dá o corpo e a vida pela justiça e pelo amor ao próximo.
Também aponta o dedo aos católicos!
O egoísmo, infelizmente, também atingiu os católicos. E só é possível amar quando não há egoísmo. O egoísmo é a negação do amor. Temos um catolicismo muito tradicional e pouco consciente ou lúcido. Os cristãos são pouco esclarecidos, pouco empenhados e, portanto, pouco evangélicos. São católicos só de nome. Viemos de uma igreja pouca evangelizada, onde as pessoas viviam muito à sombra do poder. Os católicos estão perante grandes desafios nesta mudança, num momento de transição, a ver cair todo um passado. E começa a surgir, aqui e além, quem proponha uma nova ordem social e mundial. E os valores cristãos terão aí um lugar importantíssimo. Os bispos já perceberam isso só que não sabem ainda como o fazer.
Porque diz que Portugal é o País mais injusto da Europa?
Porque tem a maior décalage entre ricos e pobres. Se houvesse uma distribuição mais equitativa dos rendimentos ou da riqueza, isto não era assim. Se tivéssemos uma sociedade que proporcionasse oportunidades mais iguais, certamente que as pessoas teriam evoluído e teriam capacidade, formação e informação para poder sair da situação de pobreza ou dependência. A pobreza económica, cultural, habitacional, de saúde são facetas de uma sociedade injusta. Grande parte desta gente desempregada não tem qualificação, nem tem já hipótese de a ter. Depois temos outro problema gravíssimo: o elevado absentismo das crianças à escola. Ou seja, estas novas gerações também não terão capacidades de transformar a sociedade. E a injustiça provoca cascatas de pobreza.
Acredita que entre os mais de 60 por cento de abstencionistas nas eleições europeias em Portugal estão os cerca de dois milhões de pobres?
Acho que sim, porque eles não acreditam em ninguém. Tanto lhes faz votar nuns como noutros. Achei interessante que aqui, na Ribeira, quem mais subiu foi o Bloco de Esquerda. Porque se calhar são aqueles que mais “berram” a favor da justiça.
“A pobreza não tem partido nem sindicato”
Qual o papel do Governo para contornar a situação da pobreza?
O mais grave é que há políticos que chamam a esta gente de preguiçosa. Primeiro marginalizam-os, tornam-os vítimas da injustiça e depois acusam-os de serem culpados por serem vítimas. É preciso ter uma falta de decência, informação e respeito pelas pessoas. É uma fórmula mais ou menos sofisticada de escravatura. Os pobres têm de se sujeitar a tudo o que sociedade quer e depois têm de viver do rendimento mínimo de inserção que é uma forma de os manter calados e quietos. Isto é tornar uma sociedade escravizada e dependente, sem capacidades de ser alguém e de participar activamente na vida social. E não é a decisão de qualquer gabinete ou ministério de Lisboa que decidirá a sorte dos outros.
É o caso deste governo?
Este Partido Socialista não está muito interessado em ouvir os pobres e lamento muito que o Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, nestes últimos anos, não tenha ouvido aqueles que trabalham com os pobres. Meteram-se lá na sua poltrona, pensando que sabem tudo. Ora isso não é verdade. Certamente que estas últimas eleições lhes deram a lição de que as políticas que praticam não são as que correspondem, tanto quanto pensam, à felicidade das pessoas e que é preciso exercer mais a parceria e a prática com quem trabalha no terreno. A nossa postura é realmente trabalhar com verdade e com respeito às pessoas. Não é fazer disto trampolim para nada nem ninguém. Enquanto estiver neste cargo, não admitirei fazer dos pobres trampolim nem bandeira, como não acho legítimo que os partidos excluam dos seus programas o problema dos pobres em Portugal. A pobreza não tem partido nem sindicato. Em alguns países, como a Holanda, os pobres têm até uma secretaria de Estado. Aqui são tratados só com algumas migalhas.
Na generalidade, os empresários do norte são criticados por salvaguardarem menos os direitos dos seus colaboradores que no resto do País. Concorda com a crítica?
De modo geral, é um pouco verdade. E pela razão simples que, de modo geral também, os funcionários das empresas que já fecharam eram gente menos qualificada que se acomodava a um vencimento menor, complementado com o trabalho da horta, das galinhas e do porco lá em casa. Mas é verdade que o grande Porto é, neste momento, a região mais pobre do País, principalmente nos arredores e bairros ligados às zonas industriais. O maior desemprego é aqui que se situa.
Como justifica que, volvidos 35 anos após o 25 de Abril de 1974, haja esta discrepância entre ricos e pobres?
A análise é complexa. Saímos de um regime de ditadura e abriu-se a porta com a ideia de que íamos ficar todos ricos (mentalidade marxista). A verdade é que se investiu em tudo (cimento, auto-estradas) menos na formação das pessoas. O dinheiro da União Europeia desapareceu, outro nem sequer foi investido porque foi roubado ou desviado. Não houve um desenvolvimento social integrado. Pretende-se colmatar agora o erro mas já com uns anos de atraso. Por outro lado, o sistema capitalista viu--se muito mais à solta, com a queda do muro de Berlim. É o tempo livre do capitalismo e do lucro sem qualquer controlo. Naturalmente, os mais pobres também foram iludidos que era imitando os ricos que iam ser felizes. Tenho vizinhos lá na aldeia que têm um palácio enorme e carros de luxo mas não pagam aos funcionários. Porque o modelo é ser como o senhor fulano de “tal e tal”. Estas pessoas têm dinheiro mas não têm formação e por sua vez os filhos também não. Com grande influência da Maçonaria, os valores, como a família, também se têm vindo a perder. Vamos é ver se conseguem salvar o País sem valores. A falta de vergonha e de ética em que se caiu, como é o caso da banca, são consequência da ausência de valores. Estamos numa sociedade do prazer e do conforto, da ganância, do roubo ilegítimo. Está tudo sem controlo.
Que mudanças preconiza?
Mudanças muito profundas, não viáveis a curto prazo, porque ainda não chegámos ao fundo. Para o ano, já se prevê 11 por cento de desempregados aqui no norte. De que é que vão viver, muitos deles já sem fundo de desemprego? Temo seriamente que esta gente, para subsistir, entre em caminhos de violência descontrolada. A pobreza extrema torna a violência cega. Se não há o bom senso, da parte dos governantes, de criar almofadas para encontrar formas de subsistência (auto-emprego ou seja do que for) temo que aumente a insegurança forte. E os ricos ainda não entenderam que se não partilham, a sua vida começa a ficar em causa. Temos de vencer o egoísmo (que é feroz neste momento) e ir ao encontro daqueles que nada têm, antes que eles nos venham roubar o que temos. É uma atitude de bom senso e de colocar as pessoas e a sua dignidade em primeiro lugar. E 2010 será o Ano Europeu de Combate à Pobreza e à Exclusão Social.
Careca aos seis anos para imitar o abade
Natural do concelho de Penafiel, oriundo de uma família agrícola abastada, Agostinho Moreira, 67 anos, dirige em Portugal a REAP. Na inocência dos seus seis anos, rapou o cabelo, para imitar o velho abade da aldeia, já a pensar que lhe queria seguir os passos para poder ajudar os pobres. Como modelos, tinha o padre Américo, visita assídua lá de casa, e também o frei Gil, dominicano, que tinha vários centros de crianças de rua, que os seus pais apoiaram em Mira, Braga e Porto.
Quando acabou o curso de Teologia, em 1966, pediu ao Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes (seu conterrâneo e que já tinha regressado do exílio, onde o visitara várias vezes) para o colocar numa terra pobre e descristianizada. E ele mandou-o para a zona da Ribeira, que era a mais difícil da cidade e, se calhar da diocese. Achou um exagero do Bispo, já que tinha só 28 anos. Considera até que foi um escândalo na altura porque eram sempre os veteranos e não os novatos que tomavam conta do célebre “bairro barredo” da zona da Ribeira.
Pouco antes do 25 de Abril de 1974, foi perseguido pela PIDE e tinha já ordem de prisão. Isto porque, já na altura defendia os pobres e a justiça, o que era considerado uma afronta política. “Mas eu tinha as costas seguras pelo meu bispo, apesar de ele estar no exílio”, diz sorridente.
Agostinho Moreira está convicto que a necessidade vai urgir muita coisa, como é o caso do casamento dos padres, porque “são homens como os outros”, até porque, até ao século XII, em toda a igreja latina, era permitida a opção do padre ser casado ou solteiro mas só igreja ortodoxa manteve essa dupla opção. “Penso que em termos teológicos não há nada contra. Há apenas a questão disciplinar”, diz.
Já em relação à alienação dos povos, defende que ela é sempre “uma forma de escape e libertação de alguma pressão, como se de uma consulta de para-psicologia aplicada se tratasse. “Quer seja o álcool, o sexo, a política ou o futebol”. Mas em relação a este último, para Agostinho Moreira “estes negócios de jogadores não deixam de ser negócios de pessoas. Coisas que se dizem em surdina, porque não sabemos bem quem ganha mais com o quê”. E interrroga-se:“qual o contributo que os jogadores dão à sociedade? Não sabemos bem se estão ou não isentos de impostos porque é tudo muito encoberto e pouco transparente”.