in AMI
“O que ninguém quer falar sobre a pobreza”, desde os ciclos de vida repetidos de pais para filhos, à exclusão do contrato social, porque “quem vive na pobreza nada pode dar” é o que Maria Joaquina Madeira, vice-presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza e impulsionadora da implementação do Rendimento Social de Inserção em Portugal afirma ser necessário colocar abertamente no debate público “sem eufemismos. Ainda estigmatizamos a pobreza e não quebramos o ciclo entre gerações. Maria Joaquina Madeira, vice-presidente Rede Europeia Anti-Pobreza (EAPN).
Que metas não foram alcançadas com o Rendimento Social de Inserção?
O Rendimento Social de Inserção [RSI] devia ser uma ferramenta eficaz na luta contra a pobreza, no entanto, ficou aquém do objetivo.
O RSI tinha como meta dar mais capacidade às pessoas na aquisição de bens e serviços, para viverem com mais dignidade, mas tornou-se insuficiente. Não podemos esquecer que grande parte dos beneficiários de RSI são idosos, doentes crónicos ou crianças. Beneficiários que não representam população ativa.
O RSI é insuficiente só pelo valor ou porque faltam políticas públicas complementares?
Hoje fala-se em mínimos adequados para ter uma vida digna, de acordo com recomendações europeias.
A sociedade caminha para outro patamar de rendimentos e a perspetiva é de que o RSI se mantenha apenas para as situações mais críticas. A meta agora passa por alcançar níveis de rendimento que vão ao encontro das despesas base das pessoas, para que reúnam condições de vida mais dignas.
Somos uma sociedade alimentada economicamente de forma desigual e por conveniência?
O melhor que pode acontecer a uma organização humanitária como a EAPN ou a AMI é deixar de ser necessária, afinal, elas trabalham para o seu fim e esse seria o mundo perfeito. Mas, a vida em sociedade é um contrato, damos para recebermos. As pessoas em situação de pobreza não entram no contrato social porque não têm nada para dar em termos de impostos e poder de compra.
É preciso colocar no debate público o que ninguém quer falar sobre a pobreza e fazê-lo sem eufemismos. A verdade é que ainda estigmatizamos a pobreza e mantemos um ciclo difícil de quebrar entre gerações.
O conceito de aporofobia criado pela filósofa Adela Cortina traduz-se como medo do pobre numa sociedade que estigmatiza a pobreza. Do estigma da pobreza nascem nichos de precariedade alimentar e habitacional e oportunidades para situações de vida à margem da lei, com vista a obter rendimentos ou ascensão social de forma rápida.
É bom ter essa palavra, apesar de pesada, porque ela concretiza o problema e a sociedade pode usar a palavra aporofobia como missão para erradicar a pobreza e não alimentar preconceitos.
Porque não se consegue quebrar a necessidade de assistência financeira ou alimentar?
Falha sobretudo a questão dos salários dignos. Temos salários insuficientes que comprometem toda a vida das pessoas, mas a pobreza não se esgota só na dimensão económica. A pobreza é multidisciplinar e complexa. Têm que se ter em conta todas as dimensões no processo de transformação e empoderamento das pessoas.
A falta de condições económicas prejudica o acesso à educação de qualidade, e, consequentemente, a uma profissão e trabalho digno.
Temos evoluído, no século XX usava-se mais o nome “pobre” do que o conceito “pobreza”. A responsabilidade de ser pobre era da própria pessoa, como se tivesse culpa. Hoje trabalhamos sobre todas as dimensões do conceito “pobreza”, desde a geográfica, à económica, saúde, educação ou acesso à cultura e lazer.
O salário mínimo nacional de hoje limita o futuro das próximas gerações?
É uma questão cultural. Temos uma população ativa de quatro milhões, há ainda muitas pessoas que por condição da sua vida, idade ou outro fator, não tem direito ao trabalho. Mais de 500 mil pessoas que trabalham e são pobres, a maior parte com família e crianças a seu cargo. Temos uma taxa de pobreza nas crianças demasiado elevada porquê? Porque os seus pais são pobres.
Pais pobres, filhos pobres?
Ainda há um ciclo de pobreza. Um aprisionamento das pessoas num ciclo de privações. A neurociência estuda os compromissos que a pobreza gera ao nível do desenvolvimento físico, mental, psicológico e social.
Quando as pessoas ficam extremamente comprometidas com ajudas materiais e afetivas mútuas ao longo da vida, a autonomia fica em causa e podem gerar outras famílias empobrecidas. O estado de privação é uma herança terrível.
Por isso afirma que “agora o trabalho das instituições e do Estado é feito com a pobreza e não com os pobres”?
Há algumas décadas o Estado e a sociedade não viam a pobreza como um problema deles. O problema era das pessoas e elas tinham que adaptar-se à vida.
Atrasado em relação à Europa, no pós-25 de abril, com a adesão à CEE [Comunidade Económica Europeia], Portugal assumiu um conceito que já circulava em outros países, o dos direitos sociais. A pobreza afinal existia porque a sociedade não garantia condições mínimas para uma vida digna.
O Estado assumiu a pobreza como um problema público e começámos a falar de integração. Vivemos um momento de empoderamento. Mas, ainda temos uma sociedade profundamente desigual e todos os dias infringimos direitos humanos.
Que políticas públicas podem quebrar o ciclo?
A Agenda do Trabalho Digno vai muito além do trabalho a nível remuneratório. Incide também sobre a precariedade e relação trabalho família. Uma agenda forte que vai ser uma política angular na transformação das condições de vida de muitos portugueses.
Depois, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza incide precisamente sobre a questão da pobreza nas crianças.
Tudo isto se enquadra na recomendação europeia: pilar dos direitos sociais.
As políticas públicas estão no terreno, mas, continuamos sem conseguir implementar o idealizado, a começar pelo trabalho.
Há uma certa desvalorização do acompanhamento e avaliação das políticas públicas implementadas. Fazem-se as políticas, as leis, executam-se e depois não se avalia o impacto.
A grande novidade é que as novas estratégias estão submetidas a um sistema de avaliação do desempenho e do impacto na vida das pessoas.
Entramos numa nova Era e estou convicta de que tudo vai ser diferente, embora só consigamos ver resultados daqui a dois ou três anos.