Miguel Oliveira da Silva, opinião, in Expresso
O médico é o amigo do doente. E, como dizia Aristóteles, a vida sem amigos não presta. Os nossos amigos — no sentido mais lato da palavra phylia — são aqueles que nunca nos abandonam. Sobretudo nas piores, mais adversas, mais imprevistas e desagradáveis circunstâncias.
É nosso amigo quem está sempre connosco quando dele necessitamos. Quem está mesmo quando o não chamamos.
Este é um clássico e beneficente valor e princípio de Filosofia da Medicina, coevo do próprio Hipócrates (460-370 a.C.), como tal ipsis verbis consagrado por Platão (428-348 a.C.) no seu belo diálogo “Lysis”.
Isto dito, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) vive um crescente acervo de problemas de cuja responsabilidade em bom rigor nenhum seu dirigente dos últimos anos está incólume, por mais que o tentem despudoradamente, quem sabe se para salvarem atuais e futuras carreiras públicas ou políticas.
Senão, vejamos: mau planeamento local e nacional, recursos logísticos nuns casos obsoletos e impróprios, prioridades adiadas, recursos humanos escassos e em fuga acelerada para o sector privado, salários baixíssimos, desumanas listas de espera, duplicação de exames complementares de diagnóstico e inexistência de um único e universal registo nacional de doentes (para todo o sistema de saúde: público, privado e social) com custos absurdos que só protegem interesses corporativos e prejudicam utentes, e outras coisas assim à proporção.
Perante este cenário dantesco, como devem os médicos dos SNS reagir quando — concordem ou não, na totalidade ou parcialmente — os seus doentes, as suas grávidas são transferidas para outros locais próximos do SNS, seja por motivo de obras seja por eventual concentração de serviços?
Note-se o caso das maternidades do SNS em Lisboa: com a atual demografia e oferta privada, será que Lisboa precisa mesmo de quatro maternidades abertas 24 horas por dia, 365 dias por ano, sobretudo quando a nova maternidade do HSM — o maior hospital universitário do país — vier a dispor de uma capacidade até 4500 partos anuais (atualmente são cerca de 2700)?
Esta questão tem que ser abordada desde já com seriedade e transparência.
Creio que, a menos que haja um baby boom de natalidade na população indígena nacional — improvável nas circunstâncias políticas e culturais atuais — um regresso do privado para o SNS (a que título?) e/ou um acréscimo descontrolado da já em curso imigração também de jovens grávidas africanas e asiáticas (indianas, nepalesas, paquistanesas, bangladexianas) — e quantas destas por cá ficarão, quantas cá vêm apenas buscar cuidados de saúde de qualidade e um visto para a Europa? — quando a nova maternidade do HSM estiver pronta, creio, poderão bastar três maternidades abertas em pleno no SNS em Lisboa.
E, no entanto, seja ou não assim o futuro próximo, importa agora que os médicos estejam onde estão os seus doentes, e que deles cuidem como sabem, neste caso das suas grávidas, independentemente de ser mais que legítimo debaterem com lealdade alternativas de eventuais metodologias e opções tomadas pelas autoridades atuais.
Não importa refugiarmo-nos agora em espúrios e pouco curiais argumentos, porque hoje já inúteis e ineficientes. O tempo atual é de o médico estar com os seus doentes, com as suas grávidas onde elas dele necessitam — e não faltarão oportunidades para se fazerem balanços e apurar responsabilidades e erros evitáveis sobre tudo o que de bom e mau ocorreu nas últimas semanas.
Obstetra no CHLN e professor catedrático de Ética Médica da FMUL