Graça Barbosa Ribeiro, in Jornal Público
Anteontem à noite, o Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz quase explodiu, tal a ansiedade dos participantes. Mas o nervosismo não passou dos bastidores da competição
Falta menos de uma hora para o início do espectáculo quando Cristina Faria, mestre em Ciências Musicais, sossega os seus colegas de júri do Festival Europeu da Canção para Pessoas com Deficiência Mental. Assegura que nenhum dos candidatos ficará triste por não ganhar. Mas, a escassos metros de distância, artistas de 12 países europeus trocam as voltas aos tradutores, que insistem, também, que o importante é participar. À pergunta sorriem e fazem um gesto que não precisa de tradução: estreitam o polegar e o indicador, levantados, para mostrar que a vitória é importante. Pelo menos "um bocadinho assim".
É sexta-feira à noite e nos bastidores do Centro de Artes e Espectáculos da Figueira da Foz todos estão num frenesim. O facto de a RTP patrocinar o espectáculo, que será transmitido perto do Natal, faz toda a diferença. Os elementos da produção dão ordens, excitados; as profissionais de maquilhagem não têm mãos a medir; artistas anónimos de todo o mundo cruzam-se com caras conhecidas, como a da jornalista Fernanda Freitas e do coordenador do Jornal da Tarde, João Fernando Ramos, que vão apresentar o espectáculo. E ainda há quem peça sossego quando Bart Beerens, um jovem belga com síndrome de Down, responde ao apelo do musicoterapeuta que o acompanha, Van den Bossche, para mostrar o seu talento na dança.
A vitória e o reconhecimento são importantes, admite Bossche. Foram necessárias muitas horas de trabalho para que o grupo Band-o-Fantasto fosse eleito para representar a Bélgica. Como entre os elementos dos grupos de outros países, naquele cada um tem capacidades diferentes. Enquanto Bart rodopia, Luk de Roose, guitarra baixo, procura apoio para se manter em pé. Bart, como muitos dos outros candidatos ao troféu do festival, já nasceu com a deficiência. Luk, agora com 53 anos, acordou com ela depois de um ano e meio de coma, aos 33, por causa de um acidente rodoviário que o obrigou a viver quase uma década num hospital. Há quem dependa completamente dos acompanhantes portugueses que a Associação para a Recuperação de Cidadãos Inadaptados da Lousã (organizadora do festival) proporcionou aos representantes de cada país. É o caso do grupo Pentruvoi, da Roménia, cujos elementos vieram acompanhados apenas do seu musicoterapeuta.
Já Danny Smoorenburg, holandês, arrasta atrás de si uma comitiva de mais de 30 pessoas e é permanentemente seguido pelos quatro elementos da televisão pública do seu país, que vai transmitir um documentário sobre o jovem de 20 anos na tarde de 31 de Dezembro. Com o cabelo louro espetado e sorriso constante, Danny senta-se num dos camarins para mais uma entrevista. Diz que um dos seus maiores problemas, quando criança, foi "não parecer deficiente mental". Corre, salta, dança, canta e ri com desenvoltura, como há-de mostrar, em breve, no palco. Do outro lado da barreira de espelhos, no mesmo camarim, está o húngaro Tamás Négyessy, de 38 anos, que não sorri ao dizer que o festival é "um desafio". O movimento de ajeitar a gola da camisa, olhando-se num espelho alto de mais para a cadeira de rodas em que se movimenta, exige-lhe concentração e esforço. É com dificuldade que move as mãos e os dedos que, daí a alguns minutos, serão essenciais para a sua actuação, em frente a um órgão.
A questão dos dedos é importante. "O Andrew só tocava com dois, agora utiliza quase todos", diz, orgulhoso, Syd Smith, pai do rapaz de 28 anos. Já foi professor. Agora acompanha o filho e o resto do grupo britânico Rush Hour. "Todos têm imensas dificuldades, alguns deles motoras, gravíssimas. E, no entanto, se fecharmos os olhos enquanto estão a actuar, alguém diz que são deficientes?", espanta-se Dalila Vicente, uma professora de Música que dedicou quatro dias de trabalho voluntário à iniciativa. Aponta o exemplo da banda portuguesa, Saravá, que recebe uma ovação especial quando acaba de actuar.
É quase meia-noite e a voz de Rui Veloso não distrai os candidatos, concentrados em duas salas. Há um silêncio profundo quando os apresentadores se preparam para anunciar o vencedor. Uma palavra e Danny salta e ri e chora e chora e ri e volta a saltar, antes de correr ao palco para receber o troféu que garante à Holanda a organização da próxima edição do festival, dentro de dois anos. Nas duas salas, o silêncio dura alguns segundos. Depois, os acompanhantes dos grupos batem palmas e riem e cantam e os candidatos acabam por cantar e aplaudir também, mas sem risos. Markus Strauss, o austríaco que interpretou "I Want to Break Free", chora.