Por Andrea Cunha Freitas, in Jornal Público
Se daqui a um tempo visitar o seu médico de família por causa de uma dor de estômago e ele lhe perguntar se está tudo bem lá em casa, não estranhe. Esse poderá ser o resultado de um estudo que nos próximos dois anos vai tentar avaliar os danos na saúde mental e física das vítimas de violência doméstica.Manuel Roberto (arquivo)
O projecto europeu que está prestes a avançar para o terreno em oito países, financiado em um milhão de euros pela Comissão Europeia, vai ser liderado por uma equipa da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, coordenada por Henrique Barros. Chama-se DoVE.
Uma nódoa negra ou um braço partido podem ser algumas marcas visíveis de um caso de violência doméstica. Mas, e o resto? "Não queremos o óbvio. Não queremos o braço partido. Queremos as formas mais subtis. Queremos perceber em que medida doenças para as quais nós não temos ainda um conhecimento exacto das suas causas podem estar relacionadas com situações de violência", explica Henrique Barros.
O coordenador do projecto DoVE diz que quer perceber o que se passa na comunidade das "pessoas normais, pessoas como nós". Os porquês deverão ficar de fora deste estudo. "Não vamos fazer uma análise qualitativa. Perde-se muito tempo e ganha-se pouca informação", argumenta.
Os dados vão permitir saber qual a frequência do problema da violência nos vários países europeus, possibilitar comparações e estabelecer uma relação mais ou menos directa com os problemas de saúde associados. Mas há mais. O DoVE permitirá uma melhor percepção da expressão da violência de género, uma avaliação quantitativa da violência contra os homens, analisar o que se passa no mundo das relações homossexuais.
As respostas podem trazer surpresas, mas, à partida, Henrique Barros espera encontrar valores elevados de violência nos mais jovens, mais homens batidos, demonstrar de uma forma científica e padronizada os efeitos na saúde, deparar com "poucas situações graves e muitas menos graves".
Há ainda o desafio de ver como as culturas, os enquadramentos jurídicos e os costumes de cada país modificam a expressão do fenómeno. Os dados do DoVE serão baseados em entrevistas a cerca de 800 pessoas de cada um dos oito países (Portugal, Suécia, Alemanha, Reino Unido, Bélgica, Espanha, Grécia e Hungria). "No limite, queremos mudar leis. Queremos melhores estatísticas para melhor saúde". Um exemplo?
"Meter a questão da violência nas consultas. Da mesma maneira que existe a rotina de medir a tensão arterial, era bom que também nos inquirissem directa ou indirectamente sobre este tipo de situações. Uma pessoa não vai ao médico a dizer "bateram-me". Vai dizer que lhe dói a cabeça, o estômago. Vai hoje, não melhora, volta amanhã. Há um consumo maior de cuidados de saúde. Temos de começar a perguntar. Caso contrário, podemos perder uma parte de um problema e que pode ser vital."
Abram a porta
As equipas da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto vão contactar pessoas entre os 18 e 64 anos que vivem no Porto, escolhidas aleatoriamente. "É importante que saibam que lhes vamos bater à porta para falar deste tema difícil, que nos recebam e respondam", sublinha Henrique Barros. O facto de a violência doméstica ser um crime público coloca um dilema. O que fazer perante uma pessoa que diz que é batida todos os dias? Ser cúmplice ou denunciar? Nenhuma das duas. Propor ajuda, todo o tipo de ajuda, é a solução. Assim, na pior das hipóteses, a ajuda pode bater à porta.
Velhos, grávidas e crianças têm estudos à parte
Não é a primeira vez que a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto se envolve num projecto europeu sobre violência doméstica. Este ano, ficou concluído o trabalho que estudou o fenómeno junto de idosos, com mais de 64 anos.
Os resultados só deverão ser revelados no final do ano mas Henrique Barros adianta que, num conjunto de sete países europeus (Suécia, Lituânia, Alemanha, Grécia, Itália e Espanha), Portugal surge no grupo dos países com resultados menos maus. "Não somos os piores", diz. Ainda assim, nota, a frequência encontrada é elevada.
Foi o primeiro estudo europeu nesta faixa etária a avaliar a prevalência de qualquer forma de violência física, psicológica, sexual ou financeira em idosos que não estão institucionalizados. A negligência também foi considerada. "Não dar a um velho ou a uma criança o que eles precisam também pode ser violência", diz Henrique Barros.
O retrato da frequência do fenómeno da violência nas crianças será o próximo. A proposta, liderada por uma investigadora alemã, já terá sido submetida à Comissão Europeia e Portugal vai participar.
Para completar esta "base de dados", o Serviço de Higiene e Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, dirigido por Henrique Barros, conta ainda com os resultados do estudo realizado com mulheres grávidas (o projecto envolveu um total de duas mil grávidas em vários países), que revelou que dez por cento (uma em cada dez mulheres) foi vítima de violência doméstica durante a gravidez.
"Estas mulheres tinham um risco quatro vezes mais alto de terem um filho pequeno ou antes do tempo", nota o especialista. Mais uma vez, procurou-se o mais subtil. "Não é por causa do pontapé que têm filhos mais pequenos. A violência implica menos sono, medo, alimentação deficiente, perturbações da imunidade, mais infecções... Se tirarmos aquele gatilho, nada das outras coisas estão lá. É como a primeira carta que faz cair o baralho. Nós geralmente só vemos a última", avisa.
Das cerca de 200 mulheres estudadas em Portugal, uma grande parte já era vítima antes da gravidez. "Havia uma fracção delas que deixou de ser batida durante a gravidez, não tivemos nenhum caso em Portugal em que a violência foi desencadeada pelo parto", lembra Henrique Barros. Por fim, deixa o alerta para que a questão sobre a violência entre na rotina médica: "Todas as grávidas fazem o teste da diabetes. A probabilidade de uma mulher grávida ser batida é mais alta do que ser diabética. E ninguém diz nada sobre isso".