Maria Cláudia Monteiro, in Jornal de Notícias
O Mundo ocidental reage ao aumento da prevalência da obesidade infantil que compromete a qualidade de vida dos adultos de amanhã. Obesidade infantil está a crescer e Portugal lidera na Europa uma realidade assustadora que está a condenar uma geração
Pode a obesidade infantil ser considerada negligência dos pais? E podem os filhos ser retirados das família com casos de obesidade mórbida?
O Mundo Ocidental exige a assunção da culpa por quem deixa as crianças crescerem com excesso de peso. Exagera-se porque a dimensão de uma epidemia silenciosa assim parece exigir. As novas gerações arriscam-se a viver menos tempo do que as anteriores, contrariando a ordem natural da evolução no lado civilizado do Mundo.
Nas últimas semanas, foi notícia a retirada de um recém-nascido à mãe, uma escocesa com obesidade mórbida, que antes de engravidar pesava 146 quilos e a quem já tinham sido retirados outros dois filhos, de três e quatro anos. Em Espanha, a opinião pública vai seguindo por estes dias o caso de Moisés, de 10 anos, também retirado à família, por sofrer de obesidade mórbida. Os pais de Moisés recusaram-se a entregar o filho que permanece escondido, evitando assim o internamento num centro de menores. Moisés escreveu, quinta-feira, uma carta ao Tribunal de Ourense, na Galiza, que decretou a sentença, na qual pediu apenas o que todas as crianças, obesas ou não, desejam da vida aos dez anos: ficar com os pais e os irmãos.
Em Portugal, digerem-se os últimos números relativos à prevalência da obesidade infantil que dão conta que 29% das crianças com idades entre os dois e os cinco anos têm excesso de peso e 12,5% são obesas. Uma situação dramática que as autoridades já só procuram que estabilize. Foi em nome do cumprimento desse objectivo mínimo que esta semana 26 empresas assinaram um protocolo de compromisso de não promoção de determinado tipo de alimentos para crianças até aos 12 anos.
Apenas em teoria será possível estabelecer que haverá casos em que a obesidade infantil resulta de situações de negligência. "No concreto deve ser muito difícil avaliar em que medida é que a obesidade pode ser uma negligência grosseira", considera o procurador da República Francisco Maia Neto, membro da Comissão Nacional de Protecção de Crianças de Jovens em Risco, que não vê com realismo a possibilidade de, em Portugal, uma criança ser retirada à família devido ao peso excessivo, tal como aconteceu em Espanha e no Reino Unido.
"Não há uma correlação directa entre a obesidade mórbida e o facto de haver negligência", sustenta o psicólogo clínico Manuel Coutinho, articulando variáveis de puro bom senso. "Há pais que têm obesidade mórbida e que não cuidam bem dos seus filhos e há pais que não têm obesidade mórbida e que também não cuidam bem dos seus filhos", explica. "O aspecto físico não pode ser só por si um factor de risco para a criança", sublinha o também secretário-geral do Instituto de Apoio à Criança. Manuel Coutinho considera, ainda, a obesidade mórbida, assumida de forma voluntária de mau trato de alimentação compulsiva, uma situação limite que, no entanto, pode ocorrer. "Dar comida em excesso, como privar, pode ser um maltrato. Mas é preciso que se inscreva no paradigma dos maus tratos e não no paradigma da doença da perturbação do comportamento alimentar", estabelece.
O nutricionista Rodrigo Abreu, autor do livro O Grande Livro da Alimentação Infantil, editado pela Esfera dos Livros, faz um apelo à ponderação, lembrando a natural convivência de paradigmas antagónicos no que à gordura das crianças diz respeito. "É preciso ponderar as coisas, sem passar do oito para o oitenta", considera. "Há uma década as crianças que estivessem gordinhas eram saudáveis. Hoje é consensual que o aumento de peso mais cedo é prejudicial. Há um meio termo que é possível alcançar", acredita, reconhecendo que "houve uma reacção exagera ao aumento galopante da obesidade". Manuel Coutinho concorda: "Os conceitos ligados à estética estão em constante mutação. Não há muito tempo gordura era formosura".
Na maioria das vezes, os pais precisam apenas de ser alertados para a necessidade de deixarem de perpetuar maus hábitos alimentares, "de uma forma pedagógica, não punitiva", advoga Manuel Coutinho. Maia Neto partilha esta opinião e dá como exemplo a actuação das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco que, no terreno, procuram corrigir as situações identificadas. "Todas as componentes de educação parental incluem questões relacionadas com a alimentação, a higiene, as relações afectivas, a parte escolar...", pormenorizou.
Fazer o melhor pelos filhos faz parte das motivações naturalmente assumidas pela esmagadora maioria dos pais. Mas, muitas vezes, o melhor é pôr seis batatas na sopa e uma cebola quando hoje é consensual que a proporção deve ser a inversa, ilustra Manuel Coutinho. Isto quando o melhor não é garantir que o estômago se enche e a fome se sacia com o que os nutricionistas chamam de "comida hipercalórica", mas que é barata e, por isso, possível de colocar na mesa.
Jerri Gray é uma mãe norte-americana que, em Maio, perdeu a custódia do filho Alexander, de 14 anos, por causa dos 251 quilos que a criança tinha. Quando o tribunal lhe pediu explicações para o incompreensível peso do filho, Jerri contou que trabalhava a tempo inteiro, acumulando turnos duplos e triplos e que improvisava face à falta de tempo para cozinhar, comprando comida-rápida para Alexander se alimentar.
"As pessoas de níveis sócio-económico mais desfavorecidos têm menos acesso à informação. Nestes casos, é extremo considerar os maus hábitos alimentares como negligência, já que muitas vezes as famílias adoptam determinados hábitos por impossibilidade de adquirirem outros mais saudáveis", adianta João Breda, coordenador da Plataforma contra a Obesidade (PCO), da Direcção-Geral de Saúde, explicando que "os alimentos de maior densidade energética tem um custo mais baixo". E apesar de as crianças ficarem saciadas com este tipo de alimentos, continuam a faltar-lhes nutrientes elementares, como o ferro e as vitaminas, nota.
A crise económica vai explicando o crescimento do consumo de comida rápida em Portugal e o atraso na estabilização da prevalência da obesidade infantil, admite o coordenador da PCO, que atira o cumprimento desse objectivo para daqui a seis anos. "A crise económica veio agravar este quadro, mas acredito que em 2015 constataremos que parámos de crescer", disse ao JN. De acordo com dados da Plataforma, três em cada dez crianças portuguesas com idades entre os dois e os cinco anos têm excesso de peso e 12,5 são obesas. Na faixa etária dos sete e os oito anos, a prevalência do excesso de peso é de 32% e a da obesidade é de 13,9%. Entre os 11 e os 15 anos, o total da prevalência de excesso de peso é de 28,2% e a da obesidade é de 11,3%. "Em termos de obesidade infantil, Portugal lidera a tabela europeia", lamenta João Breda.
O quadro é unanimemente tido como assustador. As crianças com obesidade têm maior risco de se tornarem adultos obesos e de ter doenças até agora típicas dos adultos. "Começam a surgir em crianças de seis e sete anos doenças como hipertensão, diabetes ou colesterol", explica o nutricionista Rodrigo Abreu. "Algo nunca visto. Até há algum tempo eram doenças impensáveis em crianças tão jovens", acrescentou, sublinhando que estas patologias diminuem a esperança média e a qualidade de vida destas crianças. "Há hoje uma geração que vai viver menos do que a geração anterior", estima o especialista.
O programa Geração XXI, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), propõe-se fazer a radiografia de toda uma geração, seguindo o crescimento dos bebés nascidos nos hospitais da cidade, entre 2005 e 2006, até á idade adulta. "É um estudo único em Portugal, no qual seguimos a tendência da maior parte dos países europeus, acompanhando coortes de nascimento", explicou Ana Cristina Santos, coordenadora executiva do programa e professora da FMUP. " Até à data, o que tem sido feito é medir a prevalência da obesidade num dado momento. Tem-se medido quantos têm, mas não se procura o que levou à doença", disse.
O estado geral da saúde das crianças da Geração XXI está actualmente a ser a avaliado pelos técnicos, que em função de algumas medições parciais já realizadas, esperam a confirmação da existência de preocupantes consequências da obesidade em Portugal. "Acredito que, aos quatro anos, encontraremos miúdos com hipertensão e com outras patologias de adulto", estima Ana Cristina Santos. Aos dois anos, numa avaliação mais pequena, os investigadores concluíram que a prevalência da obesidade nestas crianças rondava os 4% e o excesso de peso os 12%.
O que terá acontecido às tradições da alimentação mediterrânea do Portugal, pobre mas saudável? Não seriam elas suficientes para garantir uma geração de crianças mais saudáveis em termos de peso. Talvez fossem, mas perderam-se bons hábitos à mesa que agora comissões de técnicos procuram restaurar com sucessivos programas de educação alimentar. "É preciso ensinar os pais a comer para que possam ensinar aos filhos", alerta Rodrigo Abreu.
A solução passa pelo restabelecimento de rotinas tão básicas como "fazer com que cada um tenha o seu lugar à mesa, preservar o conceito de dia de festa ou utilizar o azeite", reconhece João Breda. "Não há só uma causa para a obesidade… Os maus hábitos alimentares são apenas uma", explica Rodrigo Abreu. "É verdade que se comem mais enlatados, comidas com maior valor calórico e de preço mais baixo. Mas a incoerência dos horários, o facto de se passar muitas horas sem comer, a falta de uma boa organização das refeições e o sedentarismo -, já que hoje é mais fácil ter as crianças em casa do que na rua a brincar e a saltar -, também favorecem a obesidade infantil", nota o nutricionista.