Por Romana Borja-Santos, em Glasgow, in Jornal Público
Rui é um dos quase cinco mil portugueses com mais de 50 anos a quem foi diagnosticada sida. É toda uma realidade nova: aprender a envelhecer com a doença
Rui entra na atabalhoada sala repleta de medicamentos da instituição onde vive e confirma o que os olhos esverdeados translúcidos já tinham denunciado. "Olhe que eu sempre fui um homem bastante vivido e mulherengo", atira, como que a justificar que a cadeira de rodas que tenta posicionar não fez sempre parte da sua vida, que já soma 70 anos. A cadeira passou a ser sua companheira pouco tempo depois de ter tido o primeiro de três acidentes vasculares cerebrais. Desmaiou em casa e acordou no Hospital dos Capuchos, em Lisboa. As análises ao sangue complicaram o cenário: VIH positivo. "Soube há mais de seis anos que tenho sida. Logo eu, que achava que isso era coisa de toxicodependentes e de homens que andam com homens."
Em Portugal, o relatório publicado este ano pelo Núcleo de Vigilância Laboratorial de Doenças Infecciosas do Instituto Ricardo Jorge indica que de 1 de Janeiro de 1983 até 31 de Dezembro de 2009 foram identificados quase cinco mil casos de infecção por VIH/sida em pessoas com mais de 50 anos - sendo mais de 900 em pessoas com mais de 65. Os dados acabados de divulgar pela ONU/Sida indicam que ao todo, no país, existem 42 mil pessoas infectadas com o vírus. Hoje é Dia Mundial de Luta contra a Sida.
O número nas camadas mais velhas da população faz com que os profissionais de saúde estejam cada vez mais voltados para a ideia de se envelhecer com esta doença. Este foi precisamente um dos temas abordados recentemente no Congresso Internacional sobre Terapêuticas na Infecção por VIH, que decorreu em Glasgow, na Escócia, e onde foi destacada a importância de se desenvolverem rastreios específicos para uma população que cresceu numa altura em que VIH e sida não eram palavras que entravam no dicionário.
"O problema nas pessoas mais velhas é que muitas vezes já são diagnosticadas numa fase de sida e, como têm outras doenças associadas, os efeitos são mais graves. É mais complicado recuperar o sistema imunitário nestas pessoas", explicou ao PÚBLICO Eugénio Teófilo, médico internista especialista em sida do Hospital dos Capuchos e um dos participantes no encontro de Glasgow.
É o caso de Rui, cujo vírus foi diagnosticado já numa fase de sida, depois de ter sido afectado por aquilo a que se chama uma doença oportunista. Hoje vive numa instituição de solidariedade social em Lisboa e prefere utilizar um nome fictício. "Ainda há muita discriminação. As pessoas dizem que não, mas a verdade é que a sida era como antigamente a lepra", justifica.
Comportamentos de risco
Rui, agora que já sabe como se transmite a doença, admite que teve "comportamentos arriscados". Casou ainda na casa dos 20 anos "depois de ter vivido muito", teve duas filhas e divorciou-se pouco depois. Somaram-se várias namoradas e relações ocasionais, de onde resultou um terceiro filho, agora com 18 anos. Era um galã. "Nos tempos de tropa foi eu que consegui andar com a menina da tabacaria, que era a moça mais jeitosa da zona."
O antigo segurança já perdeu as contas ao número de relações sexuais que teve. "Nunca fui assim com uma mulher com maus preparos. Escolhia sempre as mais ajeitadinhas e era o preferido das prostitutas, porque nunca fazia nada sem lhes oferecer comida e saber que não tinham fome", conta. Preservativo? "Na altura não se usava. Eu achava que isto da sida era para quem se drogava. Sempre tive muita sorte com as moças. Não tinha a aparência que tenho agora..."
A pensar nestes casos, Kamal Mansinho, presidente da Sociedade Portuguesa de Doenças Infecciosas e Microbiologia, defende que "é necessário alertar a população e os profissionais de saúde para que isto pode acontecer em qualquer idade e que as pessoas vivem a sua sexualidade até mais tarde". "A sida passou a ser uma doença de todos nós."
O especialista lembra que nos idosos é ainda mais importante começar a terapêutica cedo e investir em equipas multidisciplinares, capazes de avaliar todas as dimensões do doente, como a parte psicológica, e de identificarem as necessidades sociais - lembrando que os medicamentos para o VIH são comparticipados a 100 por cento, mas para as doenças associadas já não, o que pode comprometer o estado geral. Kamal Mansinho sublinha que o aumento da prevalência em pessoas mais velhas é positivo, pois significa que as pessoas estão a viver mais tempo.
"Temos de começar a pensar em décadas de terapia. Em terapias que acompanham a doença durante toda a sua vida. A mortalidade por HIV está a acompanhar a esperança média de vida comum. É cada vez mais uma doença crónica, apesar de ser - e acredito que não por muito tempo - uma doença incurável", diz, por seu lado, o especialista alemão Jan van Lunzen, director da Unidade de Doenças Infecciosas do Centro Médico Universitário de Hamburgo-Eppendorf, na Alemanha, e outro dos participantes no congresso.
Mas Rui não guarda rancor e assegura que toma "sempre todos os remédios" para "ainda andar cá mais uns anos". Quando tem problemas fala com a sua médica (agora é seguido no Hospital Egas Moniz) e garante: "Se voltasse atrás fazia tudo igual. Mas com preservativo."
A jornalista viajou a convite da farmacêutica Bristol-Myers Squibb