1.2.23

Quotas para alunos pobres propostas pelo Governo não têm paralelo na Europa

Samuel Silva, in Público

Ministério prevê que 1% das vagas fiquem reservadas para quem recebe o 1.º escalão do abono de família. Em causa estão menos de 1200 lugares para quase 14 mil beneficiários.

As quotas destinadas a alunos muito pobres, que o Governo está a ponderar introduzir no âmbito das mudanças no regime de acesso ao ensino superior, não tem paralelo na Europa. Só Itália estabelece o rendimento do agregado familiar como critério de acesso a um curso, mas sem destinar um número específico de lugares a esses estudantes. A solução merece reservas de especialistas, que defendem a sua introdução através de um projecto-piloto.

A medida que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tem em cima da mesa é a introdução de um contingente especial para alunos muito pobres. A proposta de alteração ao modelo de acesso que tem sido discutida com os parceiros do sector – e que também estabelece que os exames nacionais passem a valer, pelo menos, 50% da nota de ingresso num curso – prevê que os beneficiários do 1.º escalão do abono de família tenham reservado 1% dos lugares de cada curso em cada uma das fases do concurso nacional de acesso ou, pelo menos, uma vaga, nos cursos de menor dimensão.

Em causa estão menos de 1200 vagas, segundo a projecção feita pelo PÚBLICO com base na lista de lugares disponíveis no concurso nacional de acesso ao ensino superior do ano passado – e que teve um total de 53.640 lugares. Mesmo que o contingente especial seja totalmente preenchido, garante a entrada a menos de 10% dos jovens muito pobres que estão na idade a que habitualmente se termina o ensino secundário.

Em 2021/2022, 11.847 beneficiários do escalão A da Acção Social Escolar que, grosso modo, corresponde ao 1.º escalão do abono de família, frequentaram o 12.º ano, segundo o Ministério da Educação. De acordo com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, havia 13.600 titulares do 1.º escalão do abono de família com 17 anos, idade com que tipicamente se termina o ensino secundário, no final do ano passado. Neste ano lectivo, pouco mais de 1400 alunos, dos mais de 50 mil que entraram nas universidades e politécnicos, são beneficiários do 1.º escalão do abono de família.

Uma medida deste tipo como a que está a ser estudada pelo Governo não tem paralelo na Europa. O relatório Education at a Glance, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, sistematiza os factores adicionais, para lá dos critérios académicos, que são usados pelos diferentes sistemas de ensino no momento do acesso ao ensino superior. Apenas a Itália estabelece o rendimento do agregado familiar como critério de ingresso dos estudantes, através do Direito à Educação Universitária (DSU, na sigla italiana).
Esta iniciativa não estabelece, porém, uma via de ingresso exclusiva para alunos pobres, nem um número mínimo de vagas disponíveis para estes estudantes. O DSU é, sobretudo, um programa social, incluindo um conjunto de acções destinadas a atrair mais estudantes carenciados para o ensino superior, como desconto nas propinas ou a garantia de lugar numa residência estudantil.

Fora da Europa, os sistemas de quotas são usados no acesso ao ensino superior em países como os EUA e o Brasil. Todavia, nestes casos a origem socioeconómica dos estudantes não é o único factor considerado, sendo também especialmente importante o grupo étnico a que pertencem.

A solução seguida nos EUA e Brasil para garantir a entrada no ensino superior sobretudo aos estudantes afrodescendentes teve “resultados mistos”, mostrando que “a resolução do problema [da equidade no acesso ao ensino superior] não é fácil”, observa o antigo presidente da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, Alberto Amaral, que, no ano passado, coordenou uma publicação internacional sobre o tema (Equity Policies in Global Higher Education, editada pela britânica Palgrave Macmillan).

“O que se verificou no Brasil é que os alunos desfavorecidos acabaram, em regra, por obter os seus diplomas em instituições de pouca qualidade e em cursos menos considerados social e economicamente, mantendo as características do anterior sistema elitista”, diz.

Além disso, os alunos que entram através das quotas acabam muitas vezes por ter “menor rendimento académico”, acrescenta Amaral. Daí que “não baste garantir o acesso” dos alunos pobres ao ensino superior. “É preciso dar condições para que tenham sucesso”, acrescenta a investigadora do Observatório das Políticas de Educação e Formação da Universidade Lusófona Orlanda Tavares.

Esta especialista manifesta “algumas reservas” face à introdução de uma quota de 1% das vagas para os alunos mais pobres. “Faz-me confusão que as coisas sejam resolvidas no final do processo, já no 12.º ano, quando até aí essas pessoas acabam por ser esquecidas pelo sistema de ensino.”

“Efeito de estigmatização”

Orlanda Tavares recorda ainda que as quotas criam “um efeito de estigmatização” que deve ser considerado pelo Governo, se avançar para a concretização da medida. “A generalidade das pessoas tende a não gostar de quotas, porque fere a igualdade de tratamento de todos”, concordam Gil Nata e Tiago Neves, do Centro de Investigação e Intervenção Educativas da Universidade do Porto.

Os dois investigadores são favoráveis a que o sistema de quotas seja testado inicialmente através de um projecto-piloto, limitado no tempo e no número de cursos abrangidos. “É a forma de garantir uma melhor aceitação social, assegurando que os efeitos da medida são avaliados”, dizem. Alberto Amaral é da mesma opinião. O secretário de Estado do Ensino Superior, Pedro Teixeira, já disse, em entrevista ao Observador, querer privilegiar uma solução desse tipo.

O contingente especial de 1% das vagas para os alunos mais pobres é uma alternativa à criação de quotas para alunos das escolas do programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP) no acesso ao ensino superior e a cursos técnicos superiores profissionais, uma medida prevista no plano contra o racismo.

Apesar das reservas que manifestam, Gil Nata e Tiago Neves consideram que a solução proposta agora pelo Governo é preferível à criação de quotas para as escolas TEIP. “Esse critério era frágil, porque os próprios critérios de TEIP são frágeis”, criticam. Os dois investigadores orientaram o trabalho científico de Hélder Ferraz, que põe em causa a eficácia do programa destinado às escolas de áreas desfavorecidas. Segundo esse estudo, o fosso entre as escolas TEIP e as restantes acentuou-se nos últimos anos, apesar do investimento feito neste programa nacional.