8.10.07

CM pela inclusão: Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza - 17 de Outubro

Sandra Sousa Santos, in Correio da Manhã

Zizina gosta de ler e dar pão aos pombos

Os olhos de Zizina Felicidade Rufino vão passando pelas letras da revista, guiados pelo dedo. Já não se lembra onde a arranjou, mas acompanha-a sempre. “Gosto muito de ler”, explica, com um sorriso de 68 anos. Está sentada no Jardim Manuel Bivar, em Faro. Em frente, tem a doca e o mar. Ao lado, os sacos onde guarda os bens. Alguma roupa e “umas coisas que são precisas”, continua, de novo a sorrir.

Desde 1972 que não tem casa, já lá vão 35 anos. “Vou vivendo aqui e ali”, diz, com o mesmo sorriso. Agora talvez um pouco menos aberto. “Desde que se vendeu a casa dos meus pais, em Vila Real de Santo António”, acrescenta.

Estudou até à terceira classe. Depois foi “trabalhar para a fábrica de peixe”. Conservas, entenda-se. A fábrica, em Vila Real de Santo António, fechou e Zizina rumou aos Açores, onde continuou na mesma profissão. Aí encontrou “o único namorado” que garante ter tido. Depois, a relação não encontrou passagem para o futuro. E o mesmo aconteceu com a vida de Zizina.

Ainda trabalhou “a servir” em casa de um casal de Lisboa. O emprego terminou com a ida dos patrões para Angola e Zizina regressou ao Algarve. Por esta altura era vendida a casa onde cresceu e, por falta de mais recordações, a história dá um salto até 2007, até ao Jardim Manuel Bivar, em Faro.

“Recebo 95 euros por mês a fazer limpezas e 326,48 euros da Caixa”, diz, acrescentando, que está à procura de casa para alugar. Os dias vão passando entre a igreja e o jardim, onde dá “o pão que fica duro aos pombos”. Estranha ironia a de ter nome Felicidade.

José Penedo, 46 anos, e Abel Sousa, 64, partilham tudo o que têm. E estamos a falar apenas de um banco de rua e umas buchas que “algumas pessoas vão dando”. Estão precisamente a almoçar. Pedaços de pão, toucinho e chouriço. Com um pacote de vinho tinto para empurrar. A faca vai passando de mão em mão, conforme cada um corta mais uma lasca do farnel.

José viu aquilo a que chamava carreira como “arrumador de ferro, em Albufeira”, ser interrompida por um atropelamento. Não voltou a arranjar emprego. Abel, natural de Viseu, foi para o Algarve “à procura de trabalho”, mas, simplesmente, não o encontrou.

Vivem os dois junto ao Centro de Ciência Viva, em Faro, mas o azar não os deixa. A cadela de José, a ‘Dina’, foi levada pelos serviços da câmara. Já o carro de Abel que, no espírito de partilha, utilizavam como resguardo, foi rebocado há uma semana. “O carro estava bom”, garante Abel, “mas o Cavaco vinha visitar isto e levaram-no”. E a ironia volta a aparecer: por morte do pai, o Presidente adiou a visita.

TRÊS PERGUNTAS A LUÍS VILLAS BOAS (Director do Refúgio Aboim Ascensão)

- A pobreza é um fenómeno preocupante no algarve?

- Não penso que seja preocupante, mas há manchas de pobreza. É preciso ter atenção a esses casos, sobretudo, porque a pobreza é a base para uma vivência em exclusão.

- O estado tem aplostado em inverter a situação?

- Há um combate que, de algum modo, é visível, mas não nos podemos esquecer que, segundo o INE, 20% da população nacional vive abaixo do limiar de pobreza e é preciso continuar.

- E afecta o abandono de crianças?

- Os fenómenos de disrupção familiar são mais comuns nas manchas de pobreza.

REACÇÕES

"EXISTE POBREZA DISSIMULADA" (Ilda Silva, 49 anos)

“Existe pobreza no Algarve, mas que, de alguma forma, está dissimulada, não é explícita. Penso que mais do que dar a cana é preciso ensinar a pescar, é preciso encaminhar as pessoas para a formação profissional”.

"AS PESSOAS SAFAM-SE" (Tarek Larbi, 44 anos)

“No Algarve não há pobreza. Há, talvez, falta de emprego, mas aqui o turismo acaba por pagar tudo. De uma maneira ou de outra as pessoas safam-se. Não se nota que existam muitos sem-abrigo nas ruas, nem muitas pessoas a pedir esmola”.

"FARTURA É QUE NÃO HÁ" (Rogério Dias, 92 anos)

“Há muita pobreza, muita gente sem dinheiro, basta olhar à volta. Claro que há uns que estão melhor e outros que estão pior, mas fartura é que não há nenhuma. Eu próprio já passei pela miséria, mas, felizmente, agora estou bem”.

"AJUDAR QUEM SOFRE" (Carla Alves, 30 anos)

“Existe muita pobreza e acho que alguém podia fazer alguma coisa para a combater. A pobreza e problemas como a toxicodependência e o alcoolismo. Vê-se muito e acho que quem sofre com isso devia ser ajudado”.

NÚMEROS

1855 sem-abrigo viviam em Portugal em 2005, segundo o último estudo sobre exclusão realizado no nosso país. Pelo menos 8718 pessoas viviam em condições precárias.

6 mendigos portugueses morrerem desde o início do ano. O último caso noticiado ocorreu a 4 de Outubro e a vítima foi uma mulher de Rio de Mouro. Em Janeiro morreram três.

10 517 é o número total de beneficiários do Rendimento Social de Inserção, no distrito de Faro, segundo os números de Junho de 2007.

36 sem-abrigo existem, oficialmente, em todo o Algarve, de acordo com o levantamento do Instituto da Segurança Social.

8 é o número de concelhos algarvios que respondeu ao estudo da Segurança Social. O mesmo número não deu qualquer resposta.

João Mira Godinho