7.10.07

"Não quero dar ao meu filho a educação que recebi"

Andreia Sanches, in Jornal Público

Chama-se Passo a Passo e é uma associação que faz formação parental junto de famílias em risco. A Fundação Gulbenkian apoia


A lista de tarefas a cumprir diariamente está afixada na porta do quarto das filhas mais pequenas de Natalina. "Nunca saio de casa sem: tomar banho; tomar o pequeno-almoço; fazer a cama; arrumar o quarto; lavar os dentes." Foi ali posta há mais de um ano, por indicação de alguém que nessa altura mal conheciam. E as crianças insurgiram-se. "Isto? Eu não faço isto!"

Natalina tem 32 anos e seis filhos. Quatro têm entre três e 10 anos, depois há uma adolescente de 12 que foi recentemente encaminhada para uma instituição de acolhimento de menores - "porque roubava os colegas" - e um mais velho com 16. Natalina, viúva, beneficiária do Rendimento Social de Inserção, tem feito um esforço para aprender a tratar dos cinco que continuam em casa.

"Era a minha mãe que costumava tratar das crianças", desabafa. E quando a mãe morreu, Natalina desorganizou-se. Os mais pequenos chegavam sujos às aulas. O mais velho deixou de estudar. A filha adolescente dava dores de cabeça ainda maiores.
Natalina não conseguia tratar dos seis ao mesmo tempo. "Alguns faziam - e ainda fazem - chichi durante a noite, mas eu acordava de manhã e tinha que levar cada um a uma escola diferente e não conseguia fazer tudo o que era preciso", desde logo dar-lhes banho, mudar-lhes a roupa da noite.

As crianças não estavam bem cuidadas e o caso foi assinalado pela Segurança Social. E há ano e meio Natalina e os filhos passaram a receber regularmente em casa as visitas das técnicas da Passo a Passo - uma associação criada em 2000/01 por um grupo de médicos, procuradores, juízes do Tribunal de Família e assistentes sociais.
Os resultados da Passo a Passo, que faz formação parental junto de famílias em risco, serviram de inspiração à Fundação Calouste Gulbenkian, que já este ano decidiu financiar mais entidades (para além desta associação) que apostem na formação de pais.

Foram "as meninas da Passo a Passo" - como Natalina lhes chama - que prepararam a lista das tarefas afixada no quarto das crianças. "Nunca me deito sem: fazer os T.P.C; jantar; preparar a mochila; arrumar a roupa que vou vestir amanhã."
Também foram elas - Joana Graça, psicóloga, Tânia Martins, Ana Marques e Sofia Duarte, assistentes sociais - que aos poucos foram explicando a Natalina como gerir uma casa com seis crianças, como tratar delas de manhã, a que instituições recorrer. Para além disso, a associação presta apoio quando ele é preciso, pagando despesas de farmácia, ou com produtos de higiene.

"Há famílias em que tem de se trabalhar mais a parte da casa, porque por exemplo viviam em barracas, foram realojadas e não se adaptaram bem, têm melhores condições mas continuam a não ligar a água e a luz, ou nunca se disponibilizaram a comprar mais um colchão e dormem todos na mesma cama", diz Sofia Duarte.

"Há outras que não vão ao centro de saúde, que não levam as crianças às vacinas... e outras em que tem que se trabalhar mais a questão da alimentação", continua Tânia Martins. Há algum tempo, foi preciso ensinar a uma mãe para que servia e como se punha um supositório. Porque ela, na Guiné, de onde vinha, nunca tinha visto um.
O filho mais velho de Natalina frequenta hoje um curso profissional, os quatro mais pequenos passaram a andar todos na mesma escola - "Levo-os todos os dias, apanhamos um autocarro, depois outro autocarro, mas chego sempre a horas." E os miúdos já não se insurjem como dantes quando olham para a lista das tarefas.

Quanto a Joana, Tânia, Sofia, deixaram de ser as pessoas estranhas que fizeram a lista. "Geralmente cria-se com estas famílias uma relação de confiança", diz Sofia Duarte.

A casa de Natalina fica no Casal da Mira, um bairro de realojamento social na Amadora. Só neste concelho, a Passo a Passo dá formação parental a quase 60 famílias. Na maior parte dos casos, as situações são sinalizadas pelos tribunais ou pelas comissões de protecção de crianças e jovens e dizem respeito a pais e mães, na maioria carenciados, que não conseguem organizar-se para dar os devidos cuidados aos filhos, ou que estão em risco de perder as crianças para instituições - ou, em casos mais raros, que já as perderam mesmo mas têm esperança de recuperá-las.

Mónica foi mãe aos 14

Perto de Natalina mora Mónica, 21 anos. Foi mãe aos 14 e acabou por ter de entregar o filho a um centro de acolhimento quando ele ainda não tinha feito três. Em Agosto passado, o juiz concordou que podia ir buscá-lo desde que fosse devidamente acompanhada. Cumpria finalmente algo essencial: tinha casa.

Assim surgiu a Passo a Passo na vida da mãe solteira. O menino está com seis anos, passou muito tempo em centros de acolhimento, mas os laços com a mãe nunca se perderam - ela nunca deixou de o visitar diariamente - e a adaptação à nova vida foi fácil.

As técnicas da Passo a Passo consideram que ela se está a sair bem. Mónica também acha. Diz que para ser melhor mãe só lhe falta um emprego. E quanto aos cuidados com o filho, parece muito segura. "Não quero dar ao meu filho a mesma educação que recebi. Não quero que ele cresça com a revolta que eu tenho. Apanhei muito."
Cada família tem as suas dificuldades, os seus traumas. As necessidades em termos de formação nunca são iguais, diz Tânia Martins. "Fazemos mapas com tarefas diárias, encaminhamos para equipamentos quando é necessário, como creches ou jardins de infância, articulamentos com centros de saúde. Não há um maneira só de fazer formação parental." E cada pessoa tem o seu ritmo. Em média, cada agregado é acompanhado por dois anos.

Natalina não conseguia tratar dos seis filhos ao mesmo tempo e passou a receber regularmente em casa as visitas das técnicas

60
A casa de Natalina fica no concelho da Amadora. Só neste concelho, a Passo a Passo dá formação a quase 60 famílias