Andreia Sanches, in Jornal Público
Relatório que faz a caracterização do sistema de acolhimento em Portugal questiona opções nos projectos de vida traçados para os menores. Para apenas 13 por cento dos que não recebem visitas de familiares é equacionada a adopção
Chegam em idades precoces, muitas vezes logo a seguir ao nascimento. E aí ficam "até quase atingir a maioridade ou ultrapassá-la". A maior parte vive em lares. A negligência é a razão mais frequente para terem sido acolhidos. É ainda esta a realidade da maioria dos menores que estão no sistema nacional de acolhimento de crianças e jovens em perigo. Mais de 40 por cento não recebem visitas da família.
O cenário é traçado no Plano de Intervenção Imediata - Relatório de caracterização das crianças e jovens em situação de acolhimento em 2006, do Instituto da Segurança Social. O documento, a que o PÚBLICO teve acesso, explica quem são e qual o contexto de 15 mil crianças e jovens que em 2006 passaram por instituições ou famílias de acolhimento. E questiona alguns projectos de vida traçados para os menores - estranhado, por exemplo, que nalguns casos não se equacione alternativas ao acolhimento institucional.
No final de 2006, pelo menos 12.245 crianças e jovens continuavam em situação de acolhimento - em lares de infância e juventude (60 por cento), em famílias de acolhimento (22 por cento), casas de acolhimento temporário (14 por cento) e outras instituições. Muitos não recebem visitas de familiares (41 por cento) nem os visitam (42) - e não é porque a justiça tenha imposto qualquer tipo de constrangimentos a esse contacto (o que acontece numa minoria de casos).
Para apenas 13 por cento dos que não têm visitas pondera-se a possibilidade de adopção. Contudo, muitos já não têm idade para esta solução, que só pode ser aplicada a menores de 15 anos.
Quase metade dos acolhidos viviam, em 2006, há pelo menos quatro anos no sistema; 28 por cento há mais de seis anos. Aliás, para "muitas crianças, o acolhimento é a realidade que conhecem desde que nasceram". Um terço dos meninos com até três anos de vida estavam acolhidos há mais de um ano.
Muitos sem projecto de vida
Que projectos de vida foram definidos para estas crianças e jovens? Quase mil menores caracterizados neste estudo não tinham projecto de vida (7,4 por cento). Sem tal projecto, continua o relatório, questões como o regresso à família ou a adopção "parecem não estar a ser colocadas por quem é responsável pelo acompanhamento da criança". E corre-se o risco de nada acontecer pois "ninguém questiona se existirão alternativas".
A razão mais apontada pelas instituições para esta ausência é o facto do acolhimento ter acontecido "recentemente".
A maioria das crianças em situação de acolhimento tem, no entanto, projecto - que passa, em 47 por cento dos casos, pelo acolhimento num lar de infância e juventude. A autonomização está prevista para 5,6 por cento dos menores - num quadro em que 49 por cento dos acolhidos são adolescentes entre os 12 e os 17 anos e 11,3 por cento têm 18 ou mais anos. Para nove por cento (1130) pensa-se na adopção. De resto, só na faixa etária dos 0-3 esta é a medida mais apontada nos projectos de vida (40 por cento). No grupo etário dos seis aos nove desce logo para 18 por cento.
"Surpreendentemente, 60 por cento das crianças e jovens sem visitas da família têm como projecto de vida a manutenção do seu acolhimento, seja em lar de infância e juventude, residência ou em família de acolhimento". Será por não existirem "outras alternativas familiares ou não-familiares"?
Futuros pouco realistas
Se se analisar apenas os menores cuja razão para o acolhimento foi o abandono, conclui-se que mais de metade estão nas instituições há mais de quatro anos, sendo que o projecto de vida pensado é, uma vez mais, o "acolhimento". Ou seja, esta solução "terá prevalecido sobre a procura de outros projectos de vida", como a adopção.
Os casos de orfandade (73 por cento das crianças e jovens nesta situação estão há mais de quatro anos acolhidos) são também exemplo de como "não terá eventualmente havido a necessária intervenção e sensibilidade por parte das entidades directamente responsáveis pelas crianças", não podendo estas "ver cumprido o seu direito a crescer numa família".
As próprias medidas decretadas pelos tribunais e comissões de protecção levantam questões. Por exemplo: 53 por cento das crianças para as quais foi decretado o acolhimento em instituição têm suporte regular da família. Então, "qual a razão para se manterem acolhidas e não ser dinamizado o seu regresso ao meio natural de vida?"
O documento realça ainda "a subjectividade" e o "pouco realismo identificados na definição dos projectos de vida". Exemplo: há 215 crianças/jovens que, não tendo qualquer contacto com os familiares, "têm como projecto de vida a reintegração na família" - "Qual a sustentabilidade para insistir numa relação afectiva familiar se não existem contactos que a alimentem e solidifiquem? Como se sentirão as crianças/jovens? Terão tido a oportunidade de participar na preparação do seu próprio futuro?"
Idade levou quase 700 jovens a sair do sistema de acolhimento
Quase dois terços das crianças das unidades de emergência estão acolhidas há mais de um ano o que é totalmente incompatível com a natureza destas instituições
Quase um quarto dos jovens (673) que deixaram o sistema de acolhimento em 2006 fizeram-no porque atingiram a idade-limite para estar na instituição ou na família de acolhimento. Mas a maior parte das saídas (1585) foi de crianças com até 14 anos de idade. Para a maioria destas, o destino foi a adopção ou a integração na família nuclear - entre as de quatro e cinco anos houve mais adopções do que regressos à família. "Grande dimensão. Longa permanência. Baixa mobilidade": estas são as características do acolhimento em Portugal, de acordo com o "Plano de Intervenção Imediata" (PII). Os tempos de permanência são longos. Não só nos lares (metade dos que lá estão vivem aí há pelo menos quatro anos), como nos centros de acolhimento temporário, onde só um quarto das crianças acolhidas está lá há seis ou menos meses. O PII é feito anualmente - este é o quarto - e é considerado pelo Governo como um instrumento de diagnóstico que lhe permite tomar medidas para cumprir a meta de reduzir em 25 por cento o número de crianças em instituições de acolhimento.
Outras conclusões do Plano de Intervenção Imediata
Adolescentes e portugueses
Metade da população acolhida em 2006 tinha entre 12 e 17 anos. Predominavam as raparigas e apenas seis por cento não tinham nacionalidade portuguesa. Cerca de 160 estrangeiros estavam com a sua situação em Portugal por regularizar. E havia 137 portugueses sem documentos válidos. Porque podem inibir "o direito e acesso destas crianças e jovens a uma cidadania plena", deve ser dada prioridade à resolução destas falhas.
A maioria está na escola
A maioria das crianças em idade escolar frequenta as aulas. Mas a educação "deve constituir prioridade de intervenção", pois muitas têm atrasos: 71 por cento das que tinham entre 15 e 17 anos não completaram o 9.º ano. A taxa de frequência do pré-escolar (76 por cento) é idêntica à nacional.
Instabilidade preocupa entre os mais novos
"Um dos direitos da criança acolhida é não ser transferida de instituição, salvo quando essa decisão corresponder ao seu interesse". Desde logo, para evitar "desvinculações afectivas sucessivas". Para a maioria essa estabilidade está garantida. Mas há quase quatro mil crianças e jovens que já passaram por, pelo menos, dois locais de acolhimento. "Bastante preocupante" é o facto de 19 por cento das crianças com menos de três anos de idade e 25 por cento das que têm entre quatro e cinco anos já tenham conhecido "três locais de acolhimento" distintos.
MP desconhece 553 casos
"Desassossego". É a expressão utilizada no relatório perante indicadores que revelam que a mudança do "paradigma algo estático" presente em algumas instituições - "no que se refere à realização plena dos direitos das crianças" - está a ser demorada. Em 2006, havia 553 crianças e jovens acolhidos cuja situação jurídica estava por regularizar e cujos casos não tinham sido sinalizados ao Ministério Público (MP). Dois terços destes menores tinham entre seis e 17 anos - "o que se revela preocupante" atendendo "à sua idade precoce". É caso para se questionar, "com elevada inquietação, quanto ao tipo de acompanhamento que lhes estará a ser assegurado." Mais de metade vivem em lares. "Atendendo à filosofia tradicional destas instituições, o envolvimento das entidades legais ainda não constitui prática rotineira."
Quase mil aguardavam decisão
No sistema de acolhimento havia quase mil que, já tendo sido sinalizados pelo MP, aguardavam ainda a regularização da sua situação. Em 80 casos, havia pelo menos cinco anos que os menores aguardavam uma decisão jurídica; para 555 não foi possível apurar sequer o resultado de quaisquer diligências processuais.
Falta acompanhamento
Todas as crianças retiradas à família devem ser alvo de uma medida decretada pelo tribunal ou comissão de protecção. Mas nem sempre uma criança é acolhida depois do tribunal o decidir. Nestes casos, a situação de acolhimento deve ser logo sinalizada ao MP. É, pois, com preocupação que se verifica que "45 por cento (636) das crianças/jovens sinalizadas em 2006" estavam acolhidas há mais de um ano, muitas delas (230) há mais de seis anos. "Ou seja, durante esse tempo de acolhimento nunca existiu uma medida jurídica que assegurasse que a situação da criança/jovem fosse regularmente acompanhada e avaliada" o facto que "concorre para a manutenção da situação de institucionalização prolongada".
423 são adoptáveis
Das 9573 crianças e jovens com situação jurídica de acolhimento regularizada, 423 tinham a sua situação de adoptabilidade definida - o que significa que estavam disponíveis para integrar uma família candidata à adopção. Faziam parte das 2617 crianças e jovens que o relatório considera que têm potencial jurídico para, a "curto prazo", "cessar o acolhimento". As entidades que as acompanhavam propuseram aos tribunais, ao MP ou às comissões de protecção medidas que passavam em 1690 casos pelo regresso à família de origem e em 504 casos a entrega para a adopção.
"A palavra "adopção" não passa à porta de muitas instituições"
Luís Villas-Boas, director do Refúgio Aboim Ascensão, em Faro, defende há muito o fim da "mentalidade institucionalizante". Este ano, 98 por cento das crianças que entraram no refúgio já regressaram à famíia ou foram para adopção. Neste momento, há 85 meninos acolhidos com até cinco anos de idade.
Qual é o tempo médio de permanência das crianças no refúgio? Quem trata dos processos?
Todo o trabalho em relação à situação jurídica, clínica psicológica, clínica médica, pedagógica é tratada e avaliada por nós e resolvida com os tribunais, a Segurança Social, as comissões de protecção. Portanto, as crianças que se tornam adoptáveis tornam-se pelo nosso pedido de confiança judicial. No ano passado, foram 34 ou 35. O número de crianças reencaminhadas para a família biológica recuperada foi ligeiramente superior. O tempo médio de permanência de crianças no refúgio ronda os 18 a 22 meses.
Qual é o segredo?
O refúgio tem 25 licenciados, juristas, psicólogas, técnicas sociais, educadoras de infância, terapeutas que trabalham todos os dias os projectos de vida das crianças. Somos nós que os fazemos, com os tribunais, a Segurança Social, os hospitais... Toda a gente utiliza hoje a expressão "projecto de vida" com uma grande ligeireza. O projecto de vida tem que ter uma base científica. Ficar aqui toda a vida não é projecto de vida.
Porque não é assim noutras instituições?
Estou convencido que a palavra "adopção" raramente passa à porta da esmagadora maioria das mais de 400 instituições que há em Portugal, que funcionam em acolhimento permanente. Prevalece a mentalidade institucionalizante. A.S.