Andreia Sanches, in Jornal Público
Há mais gente sem abrigo e algumas destas pessoas até recebem um ordenado ao final do mês. Mas não chega para mudar de vida
João é jardineiro, tem um ordenado, mas dorme num centro de acolhimento em Lisboa. Faz parte das pessoas apoiadas pela Assistência Médica Internacional (AMI) que não têm casa apesar de terem um trabalho.
Os números foram apresentados recentemente por Fernando Nobre, presidente da AMI em Portugal: mais de uma em cada dez pessoas sem abrigo (12 por cento) apoiadas pela instituição trabalha. O fenómeno não será novo. Mais vai contra a imagem que existe desta população, nota Pedro Sousa, coordenador do Abrigo da Graça, gerido pela AMI.
Jorge dos Santos, da direcção da Comunidade Vida e Paz, diz que não só há um aumento dos sem-abrigo ("No ano passado fazíamos 700 sanduíches por dia para distribuir duas por pessoa, este ano passámos a fazer 800"), como tem encontrado homens com emprego. "Trabalham, têm um vencimento, mas vivem na rua."
Lembra, de resto, alguns casos, todos recentes, com os quais se confrontou nos giros nocturnos na capital: um vendedor ambulante que "já foi inspector de uma petrolífera e dormiu em hotéis de cinco estrelas", por exemplo. E "um senhor de Trás-os-Montes que costumava ir ter com a equipa para conversar um bocadinho".
Quando conheceu este último, Jorge dos Santos achou a situação dele insustentável: "Trabalha numa empresa de construção civil, ganha o salário mínimo, diz que dá para as suas despesas, mas não para pagar um quarto. Perguntei-lhe: 'Mas como é que consegue ir trabalhar todos os dias sem descansar convenientemente?' Claro que se dormia na rua descansava pouco... Conseguimos arranjar-lhe uma cama numa instituição."
1448 apoiados pela AMI
Às oito da noite de uma segunda-feira os homens que jantam na sala de refeições do Abrigo da Graça não descolam os olhos do jogo de futebol. Janta-se cedo no centro, das 19h30 às 21h30. Fuma-se um cigarro no pátio (é proibido nos quartos) e pelas 23h00 está oficialmente aberto o período de descanso, até às 7h00 do dia seguinte. Salvo situações muito excepcionais, ninguém pode ficar nas instalações durante o dia. E as portas só reabrem a partir das seis da tarde.
Cada um dos cinco quartos da casa tem cinco camas e há dias da semana definidos para cada utente usar a lavandaria. Está tudo no regulamento interno afixado numa das paredes perto da cozinha. O ambiente é calmo, a instituição é pequena quando comparada com outras da cidade.
Aqui, ao contrário do que se passa noutros centros, é preciso pagar uma mensalidade (90 euros por regra), estar disposto a procurar trabalho e, nos casos de problemas com álcool ou drogas, manter longe os consumos. O objectivo é a reinserção social. O tempo médio de permanência é seis meses. "Mas temos pessoas que ficam por três anos, às vezes mais", diz Pedro Sousa.
"Muitos têm vontade de fazer alguma coisa pela sua vida." O que ganham é que nem sempre chega. "Acham que não é suficiente para pagar uma casa." Alguns, ainda assim, acabam por autonomizar-se. "Mas as situações são sempre um bocado precárias, os salários são baixos, as pessoas que vão saindo daqui nunca saem bem." E há quem acabe por regressar.
Os homens, sobretudo portugueses, mas também imigrantes, que jantam em frente à televisão têm em comum o facto de, por alguma razão, não terem relações próximas com a família - "seja por causa de um divórcio, por situações associadas ao consumo de drogas, ou outras" - e possuírem baixos níveis de escolaridade. Mas, tirando isso, as histórias são sempre diferentes. Nuno, sem passado de dependências, contará a sua história ao PÚBLICO com um tom de quem ainda não percebeu o que lhe aconteceu. Já Rodrigo reconhece que a droga lhe complicou a vida.
No ano passado, 1448 pessoas sem abrigo recorreram à ajuda da AMI em todo o país - tinham, na sua maioria, entre 30 e 49 anos. Destas, 634 fizeram-no pela primeira vez. Sé em Lisboa a câmara municipal identificou 1187 casos.
12%
É a percentagem dos sem-abrigo apoiados pela AMI que têm um emprego e recebe um ordenado. Mas não chega.
DESTAQUE
As respostas que existem para a população sem-abrigo são sobretudo "de emergência", não são medidas "estruturais para alterar as situações de pouca protecção social e de incapacidade das pessoas acederem a habitação de baixo custo", diz Adília Rivotti, assistente social, licenciada em Antropologia, autora da tese de mestrado Do outro lado da rua - etnografia sobre pessoas sem abrigo na cidade de Lisboa, defendida no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa.
Faltam programas de apoio à criação de emprego para esta população. E mais centros de acolhimento. "Para o meu trabalho estive no centro de acolhimento de Xabregas. E há ali uma série de falhas, são camaratas, não há privacidade na higiene diária, não há sequer portas nos sanitários. Dizem que é por uma questão de segurança. Mas não creio que tenha que ser assim."
"Porque os estereótipos condicionam as políticas sociais", Rivotti quis perceber que imagem se tem do sem-abrigo. Analisadas cartas e ofícios de cidadãos comuns, empresas e entidades públicas que "sinalizam" situações à Câmara Municipal de Lisboa, encontrou um discurso que descreve quem dorme na rua como alguém "que não consegue relacionar-se, com dependências, doença mental e, eventualmente, associado a alguma criminalidade."
Recolhidos os testemunhos de 85 homens e 13 mulheres sem tecto, descobriu outra realidade. "O que encontrei foi gente que consegue manter uma certa normalidade dentro da excepcionalidade, que tem rotinas, que faz os seus biscates. Há quem arrume carros e leve isso de forma muito séria, fique com as chaves dos clientes, tenha um horário. Muitas das pessoas que conheci têm uma trajectória profissional de vários anos, eram cozinheiros, calceteiros... tinham uma vida normal e enquadrada." O alcoolismo, sim, está presente em muitos casos. Mas nem sempre se percebe se é anterior ou posterior à situação de sem-abrigo.
"Diria que qualquer pessoa pode tornar-se num sem-abrigo", continua Rivotti. O isolamento é uma questão central. "Mas viver sozinho, não ter apoio da família, não devia ser um factor de risco para se tornar sem-abrigo." O sistema de protecção social devia garantir que não é. A.S.